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Sexta-feira -23/03/07

Belo dia de piscina

Filme “Pecados íntimos” trata com delicadeza questões como a culpa, o desejo incessante de vida, a monotonia, o sonho, a angústia e os diversos dilemas existenciais que tomam de assalto o nosso cotidiano

por Nilmar Barcelos



Porcelanas delicadas, porcelanas pintadas, com olhares detalhados, expressivos. Porcelanas-gente, que, como a vida, foram produzidas, feitas. Porcelanas frágeis, que nos olham com extrema delicadeza e expressividade. Até lágrimas se vêem em tais olhares, talvez como forma de súplica, para que tenhamos cuidado extremo com a sua fugaz vida. O limite tênue entre a segurança da estante e o choque de corpos, que a qualquer descuido ou displicência, levando-as ao chão, deixando-as em cacos, metaforizam uma analogia: vidas humanas, que, como flores, crescem, florescem e secam. Porcelanas, que, a qualquer badalar de sinos inconsciente - que parecem ressoar, como urros guturais, uma máxima freudiana: o ego não é senhor da sua casa -, vão à lona, despedaçam-se, tornam-se nada. O primeiro close, a primeira e reveladora cena, a princípio simples, mas extremamente intensa no decorrer do filme Pecados íntimos (Little Children, 2006).

Dois ambientes familiares são destacados pelo diretor Todd Field, como espécies de pavios para o desenrolar combustor de pequenos mundos. A primeira e aparentemente feliz família norte-americana é composta por Sarah Pierce (Kate Winslet) - doutorando em literatura, crítica de comportamentos alheios e extremamente frustrada com os caminhos que sua própria vida tomou - e Richard (Gregg Edelman) - marido com alto posto no setor de marketing da empresa em que trabalha, mas que não tem tempo de dialogar e muito menos usufruir suas conquistas com a mulher. Nesse embróguilo encontra-se Lucy (Sadie Goldstein) - criança, filha do casal, sem nenhuma referência paterna e sutilmente rejeitada pela mãe, com quem convive o tempo inteiro.

O segundo modelo de família é composto por Kathy (Jennifer Connelly) - perfeccionista, extremamente bonita e documentarista interessada nos efeitos causados nas famílias dos soldados norte-americanos mortos no Iraque -, seu marido Brad Adamson (Patrick Wilson) - jovem, extremamente bonito, mas frustrado por nem ao menos saber o motivo de ter-se formado em direito e que, por isso, não encontra motivações para estudar para a prova da Ordem dos Advogados - e Aaron (Ty Simpkins) - criança, filho do casal, que tem uma vida supostamente feliz embora use constantemente um chapéu de “bobo da corte”, só tirando tal adereço quando sua mãe, tarde da noite, chega do trabalho.

O combustível inserido por Todd Field para culminar nas explosões se trata de uma família matrilinear nada convencional para o contexto, composta por May McGorvey (Phyllis Somerville) - mãe, idosa, mas muito centrada e lúcida – e por seu filho Ronald James McGorvey (Jackie Earle Haley) - que sofre de transtornos sexuais e é extremamente hostilizado e recriminado pelas pessoas de seu bairro, que temem a volta de Ronald, após esse cumprir pena por “crime de pedofilia”.

É no espaço público da monótona cidadezinha que esses diversos mundos se cruzam, se conhecem, se fundem em outros mundos, despertando novas possibilidades, todas voltadas - muitas vezes inconscientemente - para o incessante desejo de sentir vida pulsando nas veias. Todas as histórias giram em torno desse espaço comum, onde vidas remoem seus pequenos problemas, suas dúvidas, suas angústias e sonhos. É nesse contexto que a jovem e desiludida Sarah, por exemplo, leva sua filha Lucy todos os dias ao parque, onde se encontra e dialoga com mães bem mais velhas, com concepções de mundo completamente diferentes da sua. É nesse microcosmo que Brad provoca o imaginário daquelas mulheres mais velhas, ao levar seu filho Aaron para brincar – curioso que essas mulheres, por não o conhecerem, o chamam de “rei do baile”. É na brincadeira de empurrar filhos em balanços que Sarah e Brad se conhecem e se beijam com a desculpa de chocar aquelas mães moralistas presentes no local. É a partir daí que ambos iniciam um fato que dá novo sentido para suas vidas, que os fazem sonhar: tornam-se amantes.

Neste contexto de aspecto simples, mas de movediço campo, que a moral é novamente arrombada, nocauteada, através da figura de Ronald - que até então não havia sido visto a olho nu pela vizinhança, mas seu “fantasma” era constantemente vivificado nas fofocas e cartazes que pediam a cabeça do pedófilo. Num dia de sol, o “fantasma” veste-se de carne e osso, vai para a piscina com sua roupa de mergulho a fim de se refrescar - essa finalidade soa única e sincera. A cena é, com certeza, uma das mais expressivas e impactantes do filme, já que ao ser notado na piscina comunitária, cheia de pessoas, gera um enorme pânico. Ronald fica perdido na confusão, uma vez que todos saem aos gritos da água e ficam à beira da piscina, atrás do mergulhador, que, solitariamente olha fixo para frente - tentando entender o motivo de tal alvoroço -, não notando que era dele mesmo que aquelas pessoas fugiam. Ao ser retirado de lá pelos policiais e desabafar com um grito “eu só estava tentando me refrescar”, todas aquelas pessoas voltam à piscina com longos e histéricos gritos de felicidade.

A monotonia, ou a quebra dessa, é quem protagoniza todo o filme. É nela que Brad mata seus estudos na biblioteca – sem os quais ele seria reprovado pela terceira vez na Ordem dos Advogados – para ver jovens skatistas pularem escadas e deslizarem-se por corrimões, sonhando estar ali. É na monotonia da vida que o fetichista Richard é flagrado, por Sarah, se masturbando com imagens de computador e uma calcinha cobrindo o rosto. É na monotonia das ruas que o ex-policial Larry Hedges (Noah Emmerich) - afastado por descontrole emocional ao matar uma criança no shopping, por ver nela um terrorista potencial - prega cartazes nas casas e mobiliza uma campanha de repulsa ao pedófilo. É na monotonia que Ronald - ao ser convencido pela mãe a colocar um anúncio no jornal para arrumar uma namorada, que pudesse cuidar desse após sua morte -, ao voltar de um jantar no carro da pretendente, que também tinha transtornos mentais, se masturba na frente dessa e a ameaça, mesmo quando tudo indicava para o namoro de ambos.

O título original Little children, sendo traduzido literalmente como Criancinhas ou Pequenas crianças se tornaria completamente fiel à idéia da obra de Tom Perrotta - escritor do livro e roteirista da adaptação juntamente com Todd Field. O nome para a versão em português Pecados íntimos é mal adaptado, uma vez que as crianças - mesmo sendo uma metáfora para se tratar de adultos inconsistentes, frágeis e inseguros - não possuem “pecados”, segundo a tradição cristã predominante nos Estados Unidos. Creio que essa questão é um ponto chave, uma vez que a culpa ou a ausência dessa é um ponto muito bem desenvolvido no filme. O pedófilo, por exemplo, em nenhum momento é visto como possuidor de um transtorno mental, enquanto todos os outros personagens, com suas diversas neuroses obsessivas e práticas sexuais nada convencionais, o condenam deliberadamente - mesmo esses cometendo diversos deslizes morais. São mentes sensíveis e frágeis, como aquelas delicadas porcelanas da estante, que a qualquer estopim ou badalar de sinos podem desencadear um processo fulminante, ora de destruição total, ora de reconciliação, tendo na personalidade de Ronald uma espécie de álibi, sempre nos lembrando que a sanidade mental é o equilíbrio de um bêbado na corda bamba sobre um precipício.


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Nilmar Barcelos é uma mentira contada, uma piada de mal gosto, um erro de roteiro, uma torta reta, uma rota morta, uma grande farsa. Em partes jornalista, embora o todo gonzo. As vezes feliz, freudiano sempre. Puramente obsceno. Nietzschiano, mas nem sempre humano. Escreve todas as sextas no Retalhos Culturais.
E-mail: nilmarbarcelos@gmail.com

 

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