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Sem lágrimas de sangue ou mágicas: doutora em Sociologia afirma que, desde João Paulo II, qualquer fiel pode se tornar beato sem milagre nenhum Trajando um surrado macacão de trabalho, e com enorme lentidão, ele sobe as escadarias do prédio, em direção ao 302. Buscava, supostamente, terminar a montagem do armário, que começara no dia anterior. Podia sentir o cheiro de medo daquela virgem, receosa em ouvir novamente palavras obscenas, que haviam arrombado seus ouvidos - como um esporro - na noite anterior. Mas, antes mesmo que a mocinha frágil e indefesa pudesse gritar por socorro, ao abrir a porta, aquele homem magro, de pele clara e cabelos castanhos dá-lhe a primeira cadeirada na cabeça. A visão da moça se entorpece em forma de negros e amedrontadores vultos. Rapidamente, retoma a consciência, mas já estava amordaçada e amarrada por cordas. De todas as formas, a jovem, de 20 anos, tenta lutar contra aquilo que parecia inevitável - o estupro. Entre tapas e gritos mudos, ela resiste, bravamente, mas não sem antes receber outro batismo de sangue: 13 marcas vermelho-tinto espalhadas pelas costas e duas na genitália. Os escritos acima poderiam ser de qualquer conto trágico de Nelson Rodrigues, mas, guardados os devidos requintes literários, trata-se de um fato, em suma real, ocorrido na cidade de Juiz de Fora (MG), em 1982. O sonho da católica fervorosa Isabel Cristina Mrad Campos - estudar medicina - era brutalmente desfeito, após defender bravamente sua castidade. O caso culminou com o processo de beatificação da devota junto a Igreja Católica, defendido, através dos modelos de santidade propostos pela Igreja, por intermédio do padre Geraldo Cifani, de Juiz de Fora, sendo julgada por martírio, uma vez que a mulher, leiga, derramou o próprio sangue para preservar sua pureza. A democracia da santidade
A presença de um mediador, como os santos, é um elemento sem o qual o catolicismo não existe, uma vez que é esse o norteador do comportamento dos devotos. A beatificação de Isabel, natural de Barbacena, faz parte de um dos dois casos analisados por Cristina Leite em sua tese de doutorado, Santos da porta ao lado: os caminhos da santidade contemporânea católica indicada ao Prêmio Jorge Zahar 2007. O segundo é o caso da canonização do padre Eustáquio, holandês que viveu e morreu no Brasil em 1943, julgado por virtudes. No caso do julgamento por martírio, como o da estudante, o processo de beatificação pela Igreja Católica contemporânea não exige a execução de milagres por parte do santo, embora o de canonização exija ao menos um. Já no segundo caso, para a beatificação é necessário a existência de um milagre e, no mínimo, dois para canonização. Os referidos casos apontam para certa evolução histórica, no que diz respeito à beatificação e canonização, que atualmente se dirigem para a desmagificação. Ou seja, os santos passam a ser valorizados por suas virtudes cotidianas, e não apenas pelas habilidades mágicas. Cristina Leite explica que, talvez, os grandes avanços científicos e o esclarecimento racional de diversos aspectos da vida humana, bem como a grande mobilidade religiosa e a reflexão diária sobre os diversos caminhos possíveis a serem escolhidos no decorrer da vida do indivíduo, tenham feito a Igreja Católica buscar métodos de aproximação junto aos seus fiéis, evitando revelar santos que choram sangue, mas, paradoxalmente, propondo a inversão daquele velho ditado popular que afirma: santo de casa não faz milagre.
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