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Após vitoriosa incursão político-discursiva no filme Amarelo Manga, o diretor pernambucano Cláudio Assis se perde em meio ao panfletário mundo de Baixio das Bestas e renega o cinema como arte Amarelo é a cor das mesas, dos bancos, dos tamboretes, dos cabos das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro-de-boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos, da charque. Amarelo das doenças, das remelas dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarréias, dos dentes apodrecidos... Tempo interior amarelo. Velho, desbotado, doente. É através do denso poema Tempo amarelo, de Renato Carneiro Campos, recitado por um dos freqüentadores do Bar Avenida, que nos abrimos completamente para a reflexão sobre a intensidade da vida e o papel avassalador que tem o tempo, ou o passar desse, no filme Amarelo Manga, de Cláudio Assis. Mas, anteriormente a isso, logo no início da obra, já ganhamos um (des)norte nas palavras amargas, mas não menos doces, de Lígia (Leona Cavalli) - dona do estabelecimento. Às vezes eu fico imaginando de que forma que as coisas acontecem. Primeiro vem um dia, tudo acontece naquele dia até chegar a noite - que é a melhor parte. Mas, logo depois, vem o dia outra vez, e vai, vai, vai... e é sem parar (...) E eu não tenho encontrado alguém que me mereça. Só se ama errado. Eu quero é que todo mundo vá tomá no cu, vocifera, enquanto arruma os bancos de madeira, logo após um plano seqüência extremamente sensual e repleto de lirismo, no qual a mulher, de cabelos amarelos, deitada nua em uma cama, levanta, coloca um vestido e se direciona para mais um dia de labuta no salão da casa onde funciona o bar.
Em uma das primeiras cenas do filme, enquanto Kika caminha rumo a sua casa, com uma bíblia embaixo do braço e seus trajes tipicamente cristãos, o discurso áspero do diretor Cláudio Assis, que se dissimula de personagem, como uma serpente, entra em cena para proferir a seguinte frase no ouvido da fiel: O pudor é a forma mais inteligente da perversão. Nisso, criamos a certeza de que, embora envolto de ideologias e discursos dos quais não podemos nos desvencilhar como atores sociais, o cinema pode e deve manter-se primeiramente como arte. No decorrer da cena, Kika chega em sua casa e, ao tentar preparar um bife, vomita no chão, vômito esse que seu gato lambe logo em seguida. Metaforiza-se então o pano de fundo sob o qual todas as outras estórias se darão. O cozinheiro gay, adepto do candomblé, que está disposto a tudo para conquistar Canibal, o açougueiro boêmio e que, embora mulherengo, é apaixonado por Kika. As boas atuações, juntamente com a fotografia de Walter Carvalho (Central do Brasil, Lavoura arcaica, Madame Satã), são o ponto forte de Amarelo Manga. É sensacional a cena em que Canibal, a caminho de se encontrar com a amante Deyse (Magdale Alves), decide entrar em uma igreja evangélica e quase se salva da tragédia que estaria por vir, ao se entorpecer com os mantras sai capeta, sai capeta, sai capeta, sai! Fica Jesus, fica Jesus, fica Jesus, fica!. Dira Paes não deixa a desejar quando precisa sair do papel recatado de beata para dar vazão a sua agressividade. Numa cena em que encontra Canibal traindo-a com Deyse, a então recatada crente esbofeteia o marido e arranca a orelha da amante com uma dentada. Em seguida, voltando para a casa, encontra com o necrófilo Isaac e, aquela que anteriormente estava morta, volta à vida após uma noite de sexo selvagem. É ao negar ser arte, em prol de um discurso panfletário, que o cinema de Assis se perde em Baixio das Bestas (2006). Nele, a estória de Auxiliadora (Mariah Teixeira) é narrada de forma também linear e crua. Trata-se de uma adolescente de 16 anos explorada sexualmente por Heitor (Fernando Teixeira), que devido a uma relação incestuosa é pai-avô da moça. Embora tenha, como em Amarelo Manga, uma diretriz poética permeando sua narrativa - "o tempo engole o engenho, a ti e a mim", recitado logo no início do filme e nos remetendo novamente a idéia de tempo e destruição -, a obra, que se passa em uma região pernambucana mais isolada, agrária, tomada por canaviais, não trabalha a denúncia política do descaso com a mesma maestria do primeiro. Em Amarelo Manga, temos a figura de um padre descrente, sem nenhuma esperança em relação ao futuro de sua igreja, capaz de recitar frases reflexivas e extremamente críticas, como eu não sou mais nem menos infeliz com a situação da minha igreja. De uma coisa eu não posso reclamar: fiéis. Aliás, isso é uma coisa que eu nem ligo. A igreja tá fechada. Não tem santo, roubaram. As missas estão paradas. E daí? Não me faz diferença (...) Esse povo tem um monte de lugar pra expor sua fé. Os templos protestantes, umbanda, terreiros, as clínicas psiquiatras. Por quê não deixam a minha igreja em paz? ou até mesmo a de um dos freqüentadores do Bar Avenida, quando afirma que o carro, no Brasil, vale mais que um caráter. Em Baixio das Bestas, embora tenhamos ótimos exemplos inteligentes de críticas e denúncias, como quando o agroboy Everardo (Matheus Nachtergaele) - que, junto com seu parceiro Cícero (Caio Blat), recorrentemente sai da grande Recife para criar agitos e quebra-quebras ("Cadê a manteiga? Hoje eu quero cumê cu") em um bordel da cidadezinha de Nazaré da Mata - afirma que a pobreza vai socializar o mundo, de forma geral o filme cai no panfletarismo obsessivo de Cláudio Assis em denunciar o interesse norte-americano para que o Brasil invista no plantio de cana-de-açúcar e gere etanol para o mundo. A utilização referencial
do curta Texas Hotel no filme Amarelo Manga, assim como a recorrência
de Nachtergaele e Dira Paes atuando nesse e em Baixio das Bestas,
aponta para uma possível progressão em determinados
aspectos da visão fílmica de Cláudio Assis
e sua maturidade como diretor. Matheus Nachtergaele, por exemplo,
sai do papel irreverente do gay Dunga e torna-se o machão
Everardo, um personagem com peso equivalente, embora com carga
dramática empobrecida na trama. Já Kika, antes do
seu encontro com os amantes, pinta a boca com um batom vermelho
- até então escondido em seu armário, devido
a preceitos morais de sua religião -, como se esse fosse
um pênis. É a partir disso que começa o laboratório
experimental, o esboço, do que se tornaria Dira Paes: Dora,
a prostituta voraz do bordel de Nazaré da Mata. Mas, ao
se perder no abismo do panfletarismo e renegar o cinema como arte
(discurso defendido pelo próprio diretor através
da boca do personagem Everardo - a melhor coisa do cinema
é que nele tu pode fazer o que tu quer") faz-se então
a regressão de Assis.
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