OPPERAA
 
Baby Boom
     
 
 
     
“Se ela se penteia, eu não sei/ Se ela usa maquilagem, eu não sei/ Se aquela mulher é vaidosa, eu não sei/ Vem você me dizer que vai ao salão de beleza/ Fazer permanente, massagem, rinsagem e otras cositas más/ Oh, baby, você não precisa de um salão de beleza. Há menos beleza num salão de beleza”
 

26/10/07
Baleiro mundo-cão, com credenciais

Vira-latas, acorrentado a uma credencial que, paradoxalmente, concedia-me livre acesso às balas azedas, doces e, muitas vezes, amargas do ex-proprietário da doceria maranhense Fazdocinhá e grande artista brasileiro ”Zé” Ribamar Coelho Santos

Pessoa muito especial. Very important people! Extremamente bem recebido pelo sensual sorriso da linda, cheirosa, competente e atenciosa produtora do show - com direito a dois beijinhos e tudo. Eu, que sempre imaginei uma bruaca mal comida, do outro lado da linha telefônica, de saco cheio dos meninotes cismados a jornalistas da editoria de cultura de qualquer mídia de merda do país, ficava embasbacado ao saber que tal mocinha havia contribuído em grande parte para a realização daquele evento. Aquela credencial, amarrada ao pescoço, como coleira, sugeria que o vira-latas que vos fala desfrutasse da companhia de outras tantas very important people, que, para tal, pagaram 50 pratas pelo camarote do aconchegante Bahia Café Hall. Enquanto pensava que se existisse um lado bom do jornalismo era nele que eu me encontrava naquele exato momento, me divertia e bolava as mesmas perguntas idiotas que poderia fazer para um artista pop. Diversos clichês, como “Por quê Baleiro?” ou pretensões de sofisticação intelectual do tipo “Como e quando deu-se a convergência da poesia em língua portuguesa na sua arte musical?”, estavam em meu roteiro de entrevista com o maranhense José Ribamar Coelho Santos, um certo ex-aluno de agronomia e ex-vendedor de balas, atualmente músico popularmente conhecido como Zeca Baleiro. Já ouviu falar?

“Se ela se penteia, eu não sei/ Se ela usa maquilagem, eu não sei/ Se aquela mulher é vaidosa, eu não sei/ Vem você me dizer que vai ao salão de beleza/ Fazer permanente, massagem, rinsagem e otras cositas más/ Oh, baby, você não precisa de um salão de beleza. Há menos beleza num salão de beleza”, canta o franzino violonista de São Luis, com olhar vago - revelando uma tristeza tímida, sem coragem para ser tal -, roupas esquisitamente combinantes, projetos de costeletas mal-feitas e um gorro na cabeça. Com a música Salão de beleza, do seu primeiro cd (Por onde andará Stephen Fry?, 1997), iniciava o swinguado espetáculo. O peso da bateria fincada de Kuki Stolarski preparava terreno para os lindos grooves do baixista Fernando Nunes. Embaixo, na pista, a multidão - em danças, suor, cantos e goladas de cerveja - podia ser observada pelo círculo restrito da parte superior - empoleirados em estruturas de metais ou acomodados em sofás, bebendo uísque e energético. À minha frente, um senhor, na faixa dos 50, demonstrava boa memória - ao cantar as letras do repertório do início ao fim - e uma alegria juvenil - exprimida em pulos e gestos faciais. Uma, talvez duas mil pessoas, diversas, diferentes, desiguais, mais estratificadas que o que os setores camarote e pista podiam exemplificar, preenchiam cada espaço daquele pequeno e sinuoso recinto.

Da geração de excelentes compositores, entre eles os também nordestinos Lenine e Chico César, Zeca Baleiro celebrava dez anos de carreira discográfica, somando nesse tempo sete cds (cinco de ouro), diversas premiações (Troféu APCA de Melhor cantor e Sharp de melhor canção, melhor disco e artista revelação), shows na Europa e uma grande lista de parcerias musicais eclética e invejável, como com Elba Ramalho, Lobão, Zeca Pagodinho, Gal Costa, Faces do Subúrbio, Jards Macalé, Raimundo Fagner, Karnak, Martinho da Vila e Zé Ramalho. A ponte que liga o ano de 1997 até Lado Z (último cd, lançado em 2007) é um caminho que, embora repleto de nuances poéticas e esquizofrenias musicais, leva o apreciador da boa música a um único local: a pulsão criacionista. Com liberdade experimental, melodias intensas e letras apuradas, Baleiro consegue trazer à tona um universo contraditório, espantoso, cheio de cores, embora, em muito, cinza, vezes triste, melancólico. Artista sincero, capaz de classificar sua própria canção Lenha (Vô imbolá, 1999), hit nacional e regravada por diversos músicos brasileiros, como trivial e medíocre. Artista honesto, capaz de afirmar que um cd pirata tem a mesma qualidade sonora de um original e que, como o destino das músicas é a banalização, quer mais é ouvir o porteiro do prédio assoviando suas músicas. Transparência.

Trechos mântricos como “Eu vi mamãe Oxum na cachoeira/ Sentada na beira do rio/ Colhendo lírio pra enfeitar o seu congá”, da música Mamãe Oxum (Por onde andará Stephen Fry?) ou “Baby, i’m alive like a rolling stone/ Vamos pra Babylon/ Vida é um souvenir made in Hong Kong/ Vamos pra Babylon/ (...) Minha religião é o prazer/ (...) Não tenho dinheiro pra pagar a minha yoga/ Não tenho dinheiro pra bancar a minha droga/ Eu não tenho renda pra descolar a merenda/ Cansei de ser de duro, vou botar minh’alma a venda/ (...) Nada vem de graça/ Nem pão nem a cachaça/ Quero ser o caçador, ando cansado de ser caça”, da Babylon (Líricas, 2000), cantados em coro, aos berros, com palmas, pelos presentes, anunciava, no clímax, entre os criativos arranjos do guitarrista Tuco Marcondes e a envolvente levada do acordeon de Adriano Magôo (também tecladista da banda), a intensa travessia ritual em que nos encontrávamos. Era dia de sábado, 20 de outubro de 2007, em torno das 23h30, no qual as palavras daquele profeta cético, pagão, fazia enorme sentido na vida daqueles fiéis, e na minha própria. Saravá!

Roteiro: 1) Conheci, recentemente, um mundo intenso, ácido, poético e cheio de nuances no cd Líricas, que tem feito enorme sentido no meu desterro em Salvador. Por quê Zeca Baleiro e o que representa este “Mundo Baleiro” pra você? 2) O que você mais recorda da infância em Arari e São Luis? Quais os aspectos culturais do Maranhão que mais te marcaram como homem e artista? 3) Suas parcerias musicais são muitas e diversas, revelando nisso um artista livre. Qual o peso desse cárcere? 4) Quando e como deu-se a convergência da poesia, no sentido mais strictu, na sua música? 5) Na música Bienal você traz à tona a velha discussão da estética relativa ao fazer artístico, que poderia ser facilmente usada em qualquer debate acadêmico sobre o tema. Qual a função da arte pra você? 6) Qual o papel da pirataria neste contexto?

Tal entrevista poderia resumir-se nas mesmas perguntas imbecis e vazias de sempre, sempre parecidas umas com as outras, das mesmas editorias de cultura de sempre, sempre parecidas com as tantas outras, as das mídias de sempre, quando, sempre que você abre o jornal, lê sempre as mesmas abordagens superficiais e semelhantes de sempre, como se comprar notícia fosse tirar sorte, já que, por exemplo, raramente a entrevista com Chico Buarque sobre seu novo cd será abordada de forma diversificada nas Folhas, Estadões, Globos e Jotabês de sempre. Para quê perguntar coisas que naquele mesmo instante, como divina palavra revelada, saltavam como respostas aos meus olhos? Dez anos completos de discografia, uma vasta carreira para além disso, e Tristeza pé no chão (regravada no Lado Z), de Clara Nunes, cantada ineditamente por Zeca Baleiro do início ao fim - fatos únicos na vida de um artista sarcástico que, com uma pedrada no espelho, vê o mundo ruir e acha graça. Poeta que, cego de tão lúcido, vê no futuro escuro uma arte de prosseguir rindo da grande piada que é a vida. Estava na cara e os sortudos presentes puderam compreender perfeitamente, tendo ou não credenciais, com quantas balas se faz um Baleiro mundo-cão.

Leia também

07/09/07 - Entre Tóquio e Salvador, escalas de uma longa ponte chamada desconstrução

03/08/07 - O homem dos mil braços


___________________________________
Nilmar Barcelos é uma mentira contada, uma piada de mal gosto, um erro de roteiro, uma torta reta, uma rota morta, uma grande farsa. Em partes jornalista, embora o todo gonzo. As vezes feliz, freudiano sempre. Puramente obsceno. Nietzschiano, mas nem sempre humano. Escreve todas as sextas no Retalhos Culturais.
E-mail: nilmarbarcelos@gmail.com

   
 

O melhor álbum de 2008 já?
A Rolling Stone(USA) sugere alguns. Votaria em qual? (Clique para ouvir)

Cat Power
Vampired Weekend
Hot Chip
Snoop Dogg
Black Mountain
Nenhum destes
                                  VOTAR!
 

Expediente::: Quem Somos::: Parceiros :::: Contato:::Política de Privacidade:::Patrocine nossa idéia
Copyright © 2008 O Binóculo On Line All rights reserved