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Já no camarim, enquanto entrevistava Otto, era possível imaginar o quanto a platéia dançava ao som do molejado show da Mundo Livre S/A.
 

19/11/07
Corpo fechado, invasões pernambucanas

Sob comando do "selvagem imperador" Otto Maximiliano Pereira de Cordeiro Ferreira e a "tropa" Mundo Livre S/A, Salvador é tomada de assalto no Mangue Beat in Concert, show-homenagem aos dez anos sem Chico Science

De costas para a famosa casa de shows Concha Acústica, em Salvador, contemplando, logo acima da precária estrutura do barracão onde funciona há oito anos o Bar do Careca, o monstruoso paredão residencial em formato "s" ou "til" conhecido popularmente como Minhocão, bebo minha gelada cerveja sob o escaldante sol de sábado, aguardando o início do espetáculo. No dvd, como aquecimento, passa um show ao vivo do artista pernambucano Otto. "Arrumei um isopor para você, pai. Deseja mais alguma coisa?", diz a simpática garçonete. Segunda cerveja e, de relance, a vejo descer na ladeira da Fonte, como em um desfile, tornando-se o centro de todos os olhares em torno. O celular toca, é a suave voz dela. Procura-me sem olhar na direção do boteco, talvez por não conseguir imaginar um jornalista "comendo água" (expressão recorrente na Bahia, que significa beber em demasia coisas com teor alcoólico) minutos antes do trabalho proposto - a cobertura dos shows de Otto e Mundo Livre S/A no Mangue Beat in Concert. Aceno e lá vem ela, na minha direção, bonita e sorridente como da primeira vez, só que, agora, com uma Nikon D-50 em punhos e não uma guitarra Arial-pro 2.

Já de início, somos muito bem recebidos pela gentil estudante de publicidade e uma das produtoras do evento - iniciativa do Circuito UCSal de Cultura, Ciência e Arte (Cucca) -, Laísa Costa, 22 anos. Nossa prezada fotógrafa, Emília Núñez, vai para trás do palco a fim de iniciar seu trabalho, enquanto eu converso com um homem alto, bonito, de olhos azuis e cabelos louros semi-longos, minutos antes do término do show de abertura da banda baiana Pirigulino Babilake. "Claro, depois do show te dou entrevista", responde o centrado cantor, que, em seguida, ouve, entre gritos e palmas, seu nome sendo anunciado no microfone. "Otto, com calma!", diz o baixista da Jambroband (banda que acompanha o músico nas turnês, produção e gravação dos cds), Rian Batista, na tentativa de apaziguá-lo. "Ah, exu mandou avisar que os anjos do asfalto estão em todo lugar", começa o chamamento de proteção segundos depois. No ritmo sempre preciso e visceral das percussões de Malê e Macaxé, o público canta a forte canção Anjos do asfalto (Condom Black, 2001). A celebração a Science, morto em um acidente automobilístico em Recife no dia 02 de fevereiro de 1997, iniciava-se de maneira, se não curiosa (devido ao conteúdo de tal música), indicativa.

Francisco Assis França, como de batismo, mas conhecido artisticamente em todo o mundo como Chico Science - então líder e vocalista da banda Nação Zumbi, chegando a gravar os dois primeiros discos dessa, os geniais Da lama ao caos (1993/ atualmente eleito pela revista Rolling Stones Brasil o 13º melhor disco brasileiro da história no top 100) e Afrociberdelia (1995/ 18º no top) -, foi um dos responsáveis diretos, juntamente com Fred 04 - vocalista da Mundo Livre S/A -, pela criação do manifesto Caranguejos com cérebro e da posterior explosão do movimento sócio-cultural nomeado Mangue Beat. Na visão de seus mentores, se o mangue representava o ecossistema biologicamente mais rico e diverso do planeta, a música produzida em Recife deveria seguir os mesmos moldes. A partir disso, o que se viu na década de 1990 foi a capital pernambucana como o eixo da efervescência cultural no Brasil, fato que seria reforçado e iconizado na morte de Science. "A passagem dele aqui foi de muita liga. Bonita, linda, única. E a gente já sofreu, e agora não sofre mais", explica Otto, ex-amigo do músico e primeiro percussionista da então Chico Science & Nação Zumbi. Tal explicação era notavelmente materializada em seu show. A cada música ou conversa de Otto com a platéia, num gole e outro de cerveja, os músicos caíam em gargalhadas e cochichos entre si. "Quando eu estou feliz, me dá vontade de cantar as grandes músicas brasileiras", explica o artista, enquanto tenta puxar trechos de Gita (Raul Seixas), As curvas da estrada de Santos (Roberto e Erasmo Carlos) e Gota D'água (Chico Buarque) com a platéia.

Já no camarim, enquanto entrevistava Otto, era possível imaginar o quanto a platéia dançava ao som do molejado show da Mundo Livre S/A. "Numa votação dos 100 melhores discos da música brasileira, feita por jornalistas, músicos e críticos para a revista Rolling Stones Brasil, o nosso disco Samba esquema noise [1994, ainda com Otto nas percussões/ 69° do top 100] apareceu entre os nomes de grandes artistas baianos, como João Gilberto. Estamos muito felizes por isso", comemora o vocalista Fred 04, alguns minutos depois, com o público. Compacta, a banda formada por Fábio Malandragem (baixo), "Chefe" Tony Regalia (bateria), Marcelo Pianinho (percussão) e Bactéria Maresia (teclados e guitarra) demonstrava-se empolgada com a multidão a anunciar: "eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água... gostosa", trecho da boa canção Melô das gostosas (Por pouco, 2000). Até cover de The guns of Brixton, da gloriosa banda The Clash, aconteceu. Inflamação que chega ao ápice nas duas músicas de encerramento - Fuleragem (Eddie) e Seu suor é o melhor de você (MLS/A) -, contando com a contagiante multi-participação de Otto, ora tocando surdo ora cantando ou girando pandeiro. "O mais importante de tudo é essa coisa da ligação do Mangue Beat, da Mundo Livre, da Nação Zumbi, do Chico Science, com a capital nordestina. Isso é a coisa mais bacana que há no mundo", explica o cantor, trajando terno e aparentando estar extremamente confortável no forte calor da Bahia. O que parecia fim era apenas o início da festa.

Em outra irregular ladeira, a da Misericórdia (situada no Pelourinho e oficialmente nomeada como rua Padre Nóbrega - novamente trazendo-nos o acaso mais um indicativo), dezenas de pessoas suadas, recém saídas do Mangue Beat in Concert, dirigiam-se para a casa multicultural Zauber - espécie de "inferninho", onde a banda cearense Cidadão Instigado (projeto paralelo de Fernando Catatau, guitarrista e arranjador da banda de Otto) faria show com a baiana Radiola. Eu (cansado, melado de suor e após mais algumas "biritas" em um boteco qualquer de Salvador) e ela (cheirosa e renovada, após o refrescante banho na casa da vovó), no afã jornalístico, rumamos para tal local. Composta em grande parte por músicos da excelente Jambroband, os instigados Rian Batista (baixo e voz), Regis Damasceno (guitarra, guitarra sintetizada, violão e voz), Clayton Martin (bateria), Kalil Alaia (sonoplastia) e Fernando Catatau (voz, guitarra e teclados) davam partida em seu contundente rock, um pé no folk e outro no brega, com letras ácidas e introspectivas, pra não dizer pessimistas, remetendo-nos em diversos aspectos sonoros a norte-americana The Mars Volta. "Mas, imagine o pobre dos dente de ouro/ Qué sim, qué sim, qué sim/ Um poco de dente de ouro, michelin/ (...) O que importa é se o sujeito fica lindo", ironiza a canção O pobre dos dentes de ouro (Método tufo de experiências, 2005), segurada nas palmas pelos presentes.

Onipresentes, lá estavam os incansáveis combatentes Otto e Macaxé, festejando e fazendo participações especiais no show da sincera banda de Catatau, como na "breguinha", segundo Otto, Pra ser só minha mulher (Tony Osnah e Ronnie Von, regravada pelo músico no disco Sem gravidade, 2003).
Em tal contínua e dionisíaca festa, misto de brega, ciranda de maluco, samba, macumba, rock e maracatu, nem deus, a science ou o diabo sabem onde e como tal arte diasporizada levará estes pernambucanos - safra atualmente engrossada por boas bandas, como Mombojó e Cordel do Fogo Encantado, além da hegemônica Nação Zumbi. "A importância da nossa cultura e religião é muito forte e eu não troco por nada nesta vida. Apenas transformo-as para outros lugares", explica Otto, que já embalou festa em Londres para os membros da banda inglesa Oasis, teve suas músicas tocadas em famosas grifes americanas, como Gianni Versace e Prada, e, atualmente, viajou pilotando um carro durante 26 dias para o programa Viagem ao Centro do Brasil, da Mtv. "Amanhã, estou indo pra Nova Iorque e foi bom ter vindo aqui pegar desse axé pra levar pra lá", conclui. Assim, a única certeza que se pode ter, com o corpo fechado e a proteção de exu, é que as invasões pós-coloniais pernambucanas permanecem mundo a fora - resignificando música, moda, cinema e artes plásticas - e a celebração a potência de vida é sem norte, rótulos, regras ou fim.

Narrados acasos de um bastidor sincero
Por Emília Núñez

O universo começou a conspirar quando um sintetizador foi esquecido por um mineiro lá em casa. Usei o “tecladinho” em um show da Flauer [banda de rock da Emília Núñez], no Encontro de mulheres da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e foi graças a isso que conheci o também mineiro Nilmar Barcelos ou “Reverendo”. No final do show, ele veio, de um jeito simpático, pedir para ver o instrumento e, como eu tinha simpatizado com o rapaz (afinal, ele bateu palminhas nas músicas, o que me deixou contente, além de ainda ser amigo-da-minha-amiga), apresentei-os: “Nilmar, sintetizador. Sintetizador, Nilmar”. Eu? “Emília, prazer”. Daí em diante, aceitaria o convite para tocar em um projeto de samba, deixando-o avisado, porém, que não sabia tocar sintetizador [o mais curioso é que, posteriormente, Emília me mandaria um recado falando que, surpreendentemente, conhecia o baterista do meu projeto. Mundo pequeno ou Truman Show?]!

Um tempo depois, receberia mais um convite de Nilmar, dessa vez para fotografar o show da Titãs e Paralamas, na Concha Acústica. Não sou fotógrafa, mas gosto de tirar fotos, como quase todo mundo na era voyer-narcísica das máquinas digitais... Era uma ótima oportunidade para entrar de graça no show, brincar com minha câmera nova e, de quebra, trocar uma idéia sobre os sambas. Aceitei, mas não garanti a qualidade das fotos. Ficou pela conta e risco do Reverendo! Como nunca tirei fotos de banda, decidi fotografar o show da Mundo Livre e Otto no Mangue Beat in Concert, evento que também ia rolar na Concha no mesmo fim de semana - coisa rara em Salvador. Para minha alegria e desespero, Nilmar me liga convidando para também cobrir esse evento [trabalho que só teria fim no show da ótima banda Cidadão Instigado, horas mais tarde na casa multicultural Zauber]. Nada de ensaio, já era pra valer.

Com a câmera em mãos, desci a ladeira da Concha, um dos melhores espaços de show em Salvador. Nilmar me esperava no bar da frente. Entramos pelo portão que dá acesso ao camarim (vida boa essa de jornalista... sem filas, nome na lista...) e fomos muito bem recebidos pela produção. Circulei livre. O clima era muito sincero, as pessoas pareciam mesmo felizes por estar ali - desde a produção até os músicos. O primeiro show [após a abertura da banda baiana Pirigulino Babilake] foi o do Otto. E que show! O palco parecia uma extensão dele. Por trás das lentes, já não pensava muito em como conseguir a melhor foto... Fui capturada e as fotos foram surgindo, “naturalmente”. Nilmar apontando as coisas e meu dedo “click”, tentando guardar um pouquinho daquele momento. O público dançando. Meninas lindas se balançavam soltas, de olhos fechados. No fim de tal show, corremos para o fundo do palco na intenção de entrevistá-lo. “Pode perguntar o que quiser!”, falava Otto. Uma simpatia, sotaque bonito, tranquilão. Fiquei encantada com o jeito que ele construiu aquele show... Despretensioso, leve. Estava lá de verdade, a música e ele misturados. A banda se divertindo, sorrindo.

Depois, veio o show da Mundo Livre S/A. Eu, que conhecia muito pouco deles, fui, devagarzinho, entrando no clima. O público super envolvido. Adorei as dancinhas bacanas do guitarrista-tecladista [Bactéria Maresia]. No fim, Otto saiu da platéia, subiu no palco e o show terminou com um grande encontro, do jeito mais vivo que poderia ser. Mas, ainda não era o fim da noite. Da Concha, fomos para a Zauber ver o show da Cidadão Instigado. Como gosto muito da banda, passei a semana toda esperando o dia para assistí-los - estava super cheio (muito quente!), mas, como esperado, muito bom. Foi aí que descobri que esse negócio de tirar foto é meio que uma ginástica também! Me estiquei tanto nas pontas dos pés e inventei tantas posições malucas e inusitadas que acho que posso lançar o “câmera-sutra”. Saldo da noite: sorriso estampado no rosto, alegria em ver que ainda há espaço para músicos sinceros, sambas na cabeça e novas palavras no vocabulário, “fraga” [termo comumente utilizado em Belo Horizonte, que significa “tá ligado?”]?


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Nilmar Barcelos é uma mentira contada, uma piada de mal gosto, um erro de roteiro, uma torta reta, uma rota morta, uma grande farsa. Em partes jornalista, embora o todo gonzo. As vezes feliz, freudiano sempre. Puramente obsceno. Nietzschiano, mas nem sempre humano. Escreve todas as sextas no Retalhos Culturais.
E-mail: nilmarbarcelos@gmail.com

   
 

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