
17/01/08
"Volta amanhã, realidade"
Realidade literária,
é realidade? E quando um senhor de chapéu
fala com você, é?
Carência literária.Você
nunca sentiu isso? Nunca? Vai me dizer que andando pela
praça da Savassi você nunca parou para bater
um papo com Roberto Drummond? Nunca teve vontade de no meio
da correria dar um abraço, daqueles bem apertados,
naqueles quatro senhores escritores sentados na Praça
da Liberdade? Nem mesmo ao subir Bahia, não lhe bateu
um impulso de apertar a bunda de Carlos Drummond de Andrade?
Nunca sentiu uma carência desse tipo? Pois eu já!
Hoje, horas antes de escrever esse texto, ela se manifestou.
Estava eu andando pelas ruas
de Lisboa, e ao passar em frente a Brasileira, (um café
que tem por aqui), me deu vontade de sentar, sentar e conversar
, escolhi um senhor, que estava em uma mesa mais alta do
que as outras. No início da conversa ele ficou meio
perturbado, mais tarde ele me explicou que todos os dias
milhares de pessoas sentavam ao seu lado e ninguém
nunca tinha parado para conversar com ele, imagine só?
Como as pessoas fazem isso? Mas, deixando isso de lado e
voltando o raciocínio, no início da conversa
esse excelentissímo senhor ficou meio confuso, e
não sabia como se apresentar. Primeiro, referiu a
si como Álvaro de Campos, aceitei. Expliquei-lhe
os motivos de ter ali sentado, falei de minha carência
e ele, com uma voz sutil me falou:
- Uma vez minha alma partiu-se
como um vaso vazio, caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu da mão da criada, descuidada, caiu! E eu, fiz-me
em mais pedaços que loça que havia no vaso.
Fiquei refletindo a respeito,
e perguntei-lhe se foi a religião, ou Deus quem fez
sua alma se regenerar. Ele, muito simples e sereno, me respondeu:
- Não acredito em
Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse
nele, sem dúvida que viria falar comigo.E entraria
pela minha porta dentro dizendo-me: Aqui estou!
Concordei com o senhor, que
depois dessa afirmação pediu-me desculpa por
ter se apresentado como Álvaro de Campos, na verdade
sempre se confundia com seus nomes, e dessa vez se apresentou,
segundo ele, corretamente. Me chamo Fernando Pessoa.Ao
contrário do que pensa, não me surpreendi.
Falei que já o tinha reconhecido, porém, o
nome tinha me fugido a cabeça. Chamei-lhe de grande
poeta, fiz vários elogios recitei-lhe uma de suas
poesias, que sabia de cór por a ter declamado em
um concurso na época da escola. Coloco-a aqui para
que você tenha noção dos versos, depois
retomo o pensamento:
Quero acabar entre rosas,
porque as amei na infância.
Os crisântemos de
depois, desfolhei-os a frio.
Falem pouco, devagar.
Que eu não oiça,
sobretudo com o pensamento.
O que quis? Tenho as mãos
vazias,
Crispadas febrilmente sobre
a colcha longínqua.
O que pensei? Tenho a boca
seca, abstrata.
O que vivi? Era tão
bom dormir!
Depois de declamar tal poema,
Pessoa me corrigiu, falou-me que essa poesia não
era dele, e sim de Álvaro de Campos, que era ele,
mas não era. Me descupei pela confusão e continuei
a falar-lhe sobre sonhos e saudade de algo distante. Ele,
então, declamou a única poesia da noite:
Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.
O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.
Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?
Emocionado o agradeci. Olhei
para a Lua cheia que brilhava, e derepente, ao meu lado,
uma estátua. Parada, muda. Limpei o início
de légrima e sorri. Apertei-lhe a mão de bronze
e fui andando, embriagado de palavras. Curado de minha carência
literária fui ao encontro de outros poetas, sentados
eternamente em outras esquinas.
Obs: Todas as citações
de Fernando Pessoa (e título) são poemas,
ou falas dele, como Pessoa, ou como outra pessoa.
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2007
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Marcelo Valadares é
jornalista com sérias pretensões de se tornar
escritor, poeta, professor universitário, crítico
de arte, cineasta, prêmio Nobel da paz, pedinte, astronauta,
músico, cantor de Fado, dançarino de Tango,
mestre de Bateria e Neo-boêmio. Escreve para O binóculo
todas as quintas. Fale com ele: marcelo_valadares@hotmail.com
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