
14/02/08
A covardia de Ana
Somente o tiro mata?
Miólos na parede. Um
tiro. Um gatilho. Uma bala. Antes era tudo normal. O sangue
circulava. Os miólos funcionavam e nesse corpo vivia
Ana. Qualquer Ana.
Ana depois de disparar a arma.
Ana antes de apertar o gatilho:
Ana viveu até o momento
em que a coragem acabou. Viveu até o momento. Antes,
muito antes de se tornar apenas corpo, ela já estava
morta. Sua vida foi acabando aos poucos. Foi cedendo aos
poucos. Até chegar ao dia. Ao final, ao ponto, ao
gatilho.
Ela era covarde. Covarde demais
para continuar viva. Covarde demais para sentir qualquer
coisa. Seus sentimentos eram covardes. Seus sentimentos
não sentiam. Sua última dor foi. Sua última
dor se foi. Não sentia vontade de nada. Não
sentia mais. Seu último sentimento foi a morte dos
sentidos.
O último suspiro antes
de sentir o último suspiro. Foi ele que matou Ana.
Foi o suspiro desiludido. O suspiro. O final. Aquele suspiro
fatal 2 anos antes do gatilho. Ana andava Ana. Ana procurava
Ana. Perdida. Perdida. Fora de si. Covardes os sentimentos
esvaecidos de si, Covardes!, pensava ela.
Um socorro, ela buscava um
socorro. Ela tentou um socorro. Um grito que a fissese estremecer.
Um orgasmo que a fissese ser. Um aperto que a fissese suar.
Uma briga, um choro. Qualquer coisa que a fissese. Ana não
se matou. Não pense isso! Ana já estava morta.
Já estava morta, ela já não respirava
depois do suspiro. Não sentia. Ana apenas osso, carne
e pele.
A única coisa que a
mantia em seu sangue, depois de morta, era a curiosidade.
Ela, apesar de morta tinha curiosidade pela vida. Tinha
resistência. Experimentava a vida dos outros. A sua,
já tinha acabado. Há muito, tinha virado pó.
Tinha a vida dos outros, mas nenhuma era sua. Sua vida durou
pouco. Só o gatilho. Somente ele. Somente a curiosidade.
Os miólos. Sangue.
Quando se morre?
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Marcelo Valadares é
jornalista e mestrando em Ciências da Comunicação
pela Universidade Nova de Lisboa. Escreve para O binóculo
todas as quintas. Fale com ele: marcelo_valadares@hotmail.com
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