
27/08/08
João,
cigarro e solidão
João estava
preso a vícios cotidianos de solidão, se viciou
nesse estado. A solidão é algo viciante. Começa
por um café em um Café. Logo em seguida, ela
passa a querer também as salas de cinema e as pistas
de dança. A solidão se transforma em namoro,
desses que sugam os casais até eles serem sós
em 2.
- “ Vamos sair
hoje?”
- “Não
posso, tenho um compromisso inadiável comigo mesmo!”
Ele era egoísta
em só querer a si, sabia disso, e deixava bem claro
à todos. Quando transava, por exemplo, não
suportava a idéia de não acordar sozinho,
com isso, mandava que quem estivesse ao seu lado, fosse
embora no meio da noite, sem o acordar. Ele precisava acordar
só, esse era seu estado no mundo.
João passou
a ser viciado em estar consigo no dia que percebeu que ninguém,
a não ser ele mesmo, poderia suprir essa vontade
incontrolável de se encontrar em alguém, ou
em algo. A necessidade que as pessoas têm de se encontrarem
em outras coisas, para João passou a ser absurda.
Isso começou no dia em que o seu eu entregue na mão
de outro, que não era ele, foi encontrado no lixo,
na sarjeta, no fundo do poço. João então
começou a cuidar de si e decidiu que a partir daquele
dia seria só. O único que o conheceria profundamente
seria ele mesmo.
A solidão de
João chegou ao ponto dele discutir política
com ele mesmo. Seu lado Direita, cravava imensas discursões
com seu lado Esquerda; nunca chegavam a um concenso. Uma
certa vez, ficou dias sem falar consigo mesmo, por causa
de uma elevação do tom de seu lado Direita.
Sua Esquerda ficou indignada e decidiu não mais dirigir
a palavra para seu lado Direita. Seu Ser político,
até então isento, teve que entrar no jogo
para convencer seus dois lados a se reconciliarem.
Com a solidão,
João começou entender o mundo (seu). Lançou
idéias, divugou-as para si e passou a acreditar em
sua própria ciência. Criou, também,
uma religião. Sua seita definia que a vida nada mais
era do que um filme em uma fita cassete, quando chegasse
ao final, seria rebubinada e tudo começaria de novo.
Quando encontrava amigos
tinha que tomar cuidado, pois sua solidão era ciumenta.
Não suportava a idéia de o ver com outras
solidões. Nesses momentos, em que compartilhava do
seu Ser, João acendia seu cigarro para acalmar sua
solidão (existe coisa mais solitária que um
cigarro?), e definia as outras pessoas como solidões
diferentes. Em sua cabeça, não era com pessoas
que ele conversava, e sim, com solidões em forma
de gente.
Comecei a observar
João há alguns anos, assim que ele começou
a se tornar só. Ultimamente tenho poucas notícias.
Conseguia alguns minutos de conversa, somente quando ele
se desviava de sua solidão. Nesses momentos curtos,
o tempo de um cigarro, ele me contava as vantagens de se
estar só. Acho que de uns meses para cá ele
tomou conta de si, anda sumido no seu eu, não consegue
mais se comunicar, sua janela vive fechada, sua campanhia
parou de tocar, suas portas têm teias. Tenho medo
que sua fita chegue ao final e somente a solidão
se perceba. Será que alguém tem que apertar
o botão para a fita voltar?
Comecei a procurar
João dentro de mim, junto ao meu cigarro.
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Marcelo Valadares é
jornalista e mestrando em Ciências da Comunicação
pela Universidade Nova de Lisboa. Fale com ele: marcelo_valadares@hotmail.com
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