OPPERAA
 
Baby Boom
     
 
 
     

Benjamin disse que aquilo que sabemos que em breve não teremos diante de nós torna-se imagem. Queremos presentificar tudo, estender o instante, experimentar o “presente” inúmeras vezes, nos apropriar do tempo para controlar a existência.

 

10/01/08
Tempo e cultura midiática

O tempo sempre instigou a curiosidade humana. Na cultura hindu, a serpente que morde a própria cauda é um símbolo milenar que se refere à eternidade. Um círculo sem começo e sem fim que representa o princípio conservador de Brahma. Já no Egito, as pirâmides são verdadeiros monumentos à imortalidade, representando a busca pela vida eterna. Da mesma forma, os gregos acreditavam que o tempo era circular, tendo seu apogeu com a afirmação de que “o tempo é uma imagem móvel da eternidade” (Timeu de Platão).

Entretanto, a inconstância do universo e as transformações humanas se encontram inerentes ao tempo, como no poema de Gregório de Mattos: “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia/ Depois da Luz se segue a noite escura. (...) Começa o mundo enfim pela ignorância/ E tem qualquer dos bens por natureza/ A firmeza somente na inconstância". Assim, na antiguidade, Zaratustra (Zoroastro) criou uma nova concepção de tempo, baseado nessa inconstância das coisas. Para ele, havia dois eixos: o tempo finito e o tempo infinito, como divindades supremas. A partir disso, com a consolidação do Cristianismo pelo mundo, o tempo passa a existir com a presença de Deus sendo, portanto, linear.

Santo Agostinho transcendeu os estudos sobre o tempo e enunciou que é possível perceber três temporalidades: o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras (talvez, se ele tivesse avançado mais no seu estudo, teria chegado à física quântica e preconizado o conceito de realidades paralelas). Enfim, essas temporalidades têm inspirado até mesmo os historiadores contemporâneos, pois afirmam que é impossível estudar uma história do passado e, sim, uma história criada no presente que se refere a dados do passado (o mesmo dispositivo da memória: a reconstrução a partir de vestígios do passado).

Porém, falaremos de memória mais tarde. Vamos nos fixar no tempo. Para Santo Agostinho, pensar na apreensão do tempo é algo ininteligível, afinal existe um tempo presente, porém sua principal característica é a fugacidade. “(...) Nem sequer um dia está todo ele presente (...) E até essa mesma única hora decorre em instantes fugazes: tudo o que dela escapou é passado; tudo o que dela resta é futuro. Se se puder conceber algum tempo que não seja suscetível de ser subdividido em nenhuma fracção de tempo, ainda que a mais minúscula, esse é o único a que se pode chamar presente; mas este voa tão rapidamente do futuro para o passado que não se estende por nenhuma duração. Na verdade, se se estende, divide-se em passado e futuro: mas o presente não tem extensão alguma”.

Pensando nisso, talvez o ser humano encontre na tecnologia uma falsa ilusão de apreensão do presente. Benjamin disse que aquilo que sabemos que em breve não teremos diante de nós torna-se imagem. Queremos presentificar tudo, estender o instante, experimentar o “presente” inúmeras vezes, nos apropriar do tempo para controlar a existência. Isso me faz lembrar o relógio derretido de Salvador Dali. O tempo nos escapando e nossa tentativa de “resgatá-lo”. A pintura é um contraste irônico com a nossa obsessão em registrar tudo na memória.

A overdose de imagens na contemporaneidade simboliza a pretensão de aprisionar o tempo e guardar a memória como se fosse um objeto palpável. Trazendo tudo para o “tempo real”, como se a memória fosse um dispositivo para congelar o instante e ser experimentado de acordo com a vontade humana.

No entanto, esse modo instantâneo de se obter o real só é possível através do imaginário. Bergson encontrou na metáfora uma forma de instituir a essência temporal da realidade. E só podemos entender o tempo parcialmente. É impossível ver em sua totalidade. Por isso, existem canais para amplificar os nossos sentidos e, assim, enxergarmos além do senso-comum. Para Bergson, um desses canais é a arte. E, na verdade, esse real não é descrito, mas narrado.

É assim que se configura a memória. O que vai ordenar o tempo é a existência de um narrador. Existem vestígios do passado que precisam de um narrador para se ordenar. É por isso que as imagens não são suficientes. É necessário um mediador (no presente) para construir uma história. No filme “O vestido”, de Paulo Thiago, uma releitura do poema “Caso do vestido”, de Carlos Drummond de Andrade, a personagem principal narra para suas filhas uma série de acontecimentos que ocorreram há alguns anos. No entanto, ela começa dizendo: “Não sei se foi exatamente assim que aconteceu, mas vou contar do jeito que me lembro”. Ou seja, é impossível congelar o passado e resgatá-lo depois, mesmo através de imagens. Há sempre a necessidade de um discurso, que pode mudar ao longo do tempo.

Eu penso a memória como um grande quadro de Picasso, feito através de colagens, distorções e transformações. É como se a gente pegasse várias revistas velhas e recortasse letras, imagens, números e símbolos para dar início a uma narrativa. O que importa não são os fragmentos e, sim, o discurso criado. Alguns elementos podem surgir voluntariamente, outros não. O que importa é o sentido que isso vai ter a partir da (re)organização do narrador.

O cineasta francês Raymond Depardon criou um vídeo intitulado “Os anos-despertar”, em que mostra fotos de sua infância narradas por ele mesmo. Segundo Bruno Leal (Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano), o vídeo tem a “impressão de virar as páginas de um álbum de vida, ou melhor, de desenrolar o rolo de um volume de memória que teria sido preservada”. Na verdade, é uma memória construída a partir de textos, falas e, principalmente, imagens vindas de diversos lugares, com diversas temporalidades. É se apropriar de alguns desses elementos e ordenar a sua forma.

O ser humano tenta de forma impulsiva se firmar no mundo. Buscar detalhes de uma infância que não pode mais ser resgatada é assistir a ressonância das patologias sociais. “Não sei quem sou, mas quero buscar o que fui”. Tentar, no passado, encontrar algum vínculo, alguma referência da sua existência. Porém, na desgastada viagem ao tempo, o ser humano encontrou na tecnologia uma forma de congelar a vida. Esse processo é uma saída para estender a sua existência, é novamente voltar ao Egito e construir novas Pirâmides (agora, através das imagens) para atingir a eternidade. Não seria então, a tentativa contemporânea de se obter um tempo circular?


_____________________________________________________
Luciana Andrade é jornalista e pós-graduada em História da Cultura e da Arte. Atualmente, é membro do Centro de Experimentação em Imagem e Som da PUC Minas. Seu objetivo é instigar novas discussões em torno do universo audiovisual contemporâneo.Fale com ela: lucianadrade2003@yahoo.com.br



   
 

O melhor álbum de 2008 já?
A Rolling Stone(USA) sugere alguns. Votaria em qual? (Clique para ouvir)

Cat Power
Vampired Weekend
Hot Chip
Snoop Dogg
Black Mountain
Nenhum destes
                                  VOTAR!
 

Expediente::: Quem Somos::: Parceiros :::: Contato:::Política de Privacidade:::Patrocine nossa idéia
Copyright © 2008 O Binóculo On Line All rights reserved