
28/05/08
Liberdade em extinção
No zoológico urbano,
seres dos mais diversos, de distintos filos e nichos, cumprem,
de forma exímia, suas funções sociais,
políticas, culturais e morais – entre outras
– categorizando-se, apenas, por um hábito em
comum: o consumo de uma erva antiga, de nome científico
Cannabis sativa. Esses bichos, porém, são
vistos com maus olhos por outras espécies que, domadas
por culturas baseadas no preconceito e na falta de conhecimento,
tendem a observá-los como ameaças para a manutenção
do ecossistema. São políticos, advogados,
jornalistas, estudantes, professores universitários,
escritores, músicos, engenheiros e comerciantes,
entre integrantes de tantas outras áreas de influência,
que levam suas vidas comuns, se atendo aos padrões
da sociedade, mas que descumprem as leis vigentes apenas
em momentos de entretenimento social – ou mesmo particular
– em que, como acontece com o álcool ou com
o tabaco, fazem o uso de uma droga. O psicotrópico
em questão causa, inclusive, menos danos que os lícitos,
mas torna-se, camuflado por leis ignorantes adotadas nos
quatro cantos do globo, um errôneo indicativo de marginalidade
ou transtorno da ordem.
A tal visão míope de um costume que é
cultural, mas que, obviamente, também se classifica
como um problema de saúde pública faz com
que sejam embaralhadas importantes questões e opiniões,
deixando de lado o valor de uma discussão macro sobre
o tema e chegando a influenciar negativamente ações
e discursos de peças-chave para o viver em sociedade,
como o Poder Judiciário e os órgãos
de segurança pública. Assim como acontece
com costumes culturais e sociais diversos, não há
como categorizar um grupo como criminoso pelo simples fato
de seus integrantes serem usuários de uma determinada
droga: existem, como em tudo, pessoas boas e ruins, responsáveis
e inconseqüentes, conscientes e alienadas, cidadãs
e marginais – em todas as áreas de influência
e classes sociais.
É extremamente preocupante assistir a cenas que nos
remetem aos anos de chumbo, com doses fortes de cerceamento
à liberdade de expressão, repressão,
arbítrio e abuso de autoridade, e que mostram um
retrocesso da consciência coletiva sobre a questão
da Cannabis – e das drogas em geral. Dois acontecimentos
absurdos, que ilustraram, timidamente, os noticiários
nos últimos dois meses, apontam um quadro que provocaria
calafrios em antigos presos políticos da ditadura.
Ato primeiro
A primeira notícia, do dia 3 de abril, mostra o espancamento
de estudantes que iriam assistir ao documentário
Grass – Maconha (1999), nos interiores do Instituto
de Geociências (IGC) da Universidade Federal de Minas
Gerais. Após a tentativa de promover uma sessão
debatida do filme, os estudantes teriam sido surpreendidos
pela presença da Polícia Militar, que, com
seus oficiais não identificados (a presença
da PM em área federal é proibida, os policiais
teriam retirado as patentes), tentaram impedir a saída
de vários alunos e professores do prédio,
muitos que nem mesmo sabiam da confusão. Após
um "eu saio de onde eu quiser, a hora que eu quiser",
curiosamente classificado como desacato à autoridade,
um dos estudantes é preso, o que gera tumulto e revolta,
fazendo com que a ação dos militares se torne
violenta e a pancadaria comece a ser distribuída.
O saldo: um estudante preso injustamente, duas alunas feridas
(uma foi levada às pressas para o HPS João
XXIII), controvérsias sobre a origem da ordem para
a entrada da Polícia, a ocupação da
reitoria pelos estudantes, muita revolta, indignação
e a geração coletiva daquele recorrente sentimento
de que há algo errado no tocante à questão
das drogas.
A triste ação da polícia indica a falta
de conhecimento e o despreparo da corporação,
o depósito equivocado de energia, tempo e dinheiro
(foram chamados "reforços" de cerca de
seis viaturas e um helicóptero), além de apontar
traços de discriminação e preconceito
como orientadores de suas operações. O joio
não pode ser confundido com o trigo. A liberdade
de expressão é garantida pela Constituição
Federal, da mesma forma como a ação policial
é regulamentada e segue critérios pré-estabelecidos.
O ocorrido na UFMG viola, de forma descarada, esses propósitos
legais e foi, além de uma afronta à comunidade
acadêmica e científica (Grass é um documentário
sério, recheado de pesquisas históricas, explicações
e relatos importantes, recentemente reeditado pela revista
Superinteressante para versão de venda em bancas
de jornal), um demonstrativo de desrespeito para com a sociedade.
O desejo de assistir a um filme e debater seu tema (independente
de qual seja ele) não poderia, de maneira alguma,
ter sido impedido a cacetadas pela polícia. A pancadaria
gerou tanta indignação que, quatro dias depois,
os universitários invadiram a reitoria da UFMG exigindo
explicações sobre o ocorrido. A novela seguiu
com diversas assembléias, audiências públicas,
queixas na Comissão de Direitos Humanos, e a nomeação,
no dia 10 de abril, de uma comissão de sindicância
que irá apurar o que aconteceu realmente no episódio
do IGC. De acordo com a portaria, assinada pelo reitor Ronaldo
Pena, a comissão tinha trinta dias para apresentar
um relatório sobre os fatos – mas o prazo foi
prorrogado por mais trinta dias.
Ato censura
Mais recente, a segunda notícia retrata a decisão
da Justiça em proibir a realização
da "Marcha da Maconha" em oito de 13 capitais
brasileiras, entre elas Belo Horizonte. O evento acontece
em 200 outras cidades em todo o mundo e objetiva promover
e ampliar a discussão sobre a regulamentação
legal do uso da Cannabis. As outras cidades em que a realização
da marcha foi suspensa foram Cuiabá, Curitiba, Brasília,
Fortaleza, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
Em Minas Gerais, o Tribunal
de Justiça deferiu, no dia 2, uma liminar impedindo
a "Marcha da Maconha", que estava programada para
o dia 4 em Belo Horizonte. Segundo noticiado pelo site O
Globo Online, o desembargador Renato Martins Jacob determinou
a suspensão da marcha na capital mineira em pedido
apresentado pelo Ministério Público Estadual.
A ação teria sido apresentada pelo promotor
Joaquim Francisco, que alegou que o evento buscava fazer
apologia ao uso de drogas.
É curioso, pois,
que o caráter da marcha tenha sido interpretado como
apologético, tendo em vista as recomendações
explícitas estabelecidas pelos organizadores do evento
(proibição da participação de
menores de 18 anos e do consumo da maconha durante a marcha)
e a programação complementar de seminários,
palestras e debates sobre temas relacionados às leis
e políticas públicas sobre o consumo de drogas.
O (mau) cheiro que fica no ar é que, mais uma vez,
a liberdade de expressão foi enforcada por alguma
brecha na lei (inciso tal, do artigo tal), usada como manobra
em detrimento de valores retrógrados, cerceadores
e conservadores. Se a ação da Polícia
Militar já assusta, imagine a da Justiça,
uma vez que, em âmbito maior, as tragédias
sempre tendem a ter proporções catastróficas.
O fim do túnel
Tanto os estudantes que foram à UFMG assistir ao
documentário quanto os participantes do coletivo
"Marcha da Maconha" buscavam exatamente o que
falta ao bojo da sociedade: ampliar o conhecimento sobre
a Cannabis sativa – quem é ela, de onde vem,
o que causa, porque foi proibida, quais as conseqüências
da sua proibição no Brasil, entre diversas
questões ainda mancas que, se debatidas e estudadas,
poderiam nortear a legislação para um caminho,
no mínimo, mais racional e humano.
Vale lembrar, face aos últimos acontecimentos e à
minha explícita vontade de não ser agredido
pela polícia, que a intenção desse
texto não é, sob qualquer visão, fazer
"apologia da maconha" – o termo já
se tornou até clichê –, mas sim propor
o abandono da hipocrisia, do preconceito e do tabu social
com que o assunto é tratado. O usuário de
maconha não é, por conseqüência,
um criminoso. Da mesma forma, o modo como a droga é
combatida hoje, fomentando os impérios do narcotráfico
e transformando as favelas brasileiras em fronts de guerra,
parece não vir obtendo tantos resultados ao longo
dos anos – nem em relação à diminuição
do consumo, como no tocante à violência do
tráfico.
O uso da maconha é, hoje, um traço cultural
de diversas sociedades e, antes de tudo, também configura
uma importante questão de saúde pública
que deve ser encarada com maturidade, segurança,
respeito e consciência. Somente quando esses valores
forem incorporados ao modo como a cultura da Cannabis é
tratada, a discussão poderá ser incorporada,
de forma evoluída, às conversas no café
da manhã em família dos brasileiros, às
mesas de bar, às redações dos jornais
e também às pautas do plenário.
Apenas dessa forma,
quem sabe em um futuro não tão distante, quando
sejam discutidas a descriminalização do usuário
e redefinição das diretrizes que orientam
a legislação, a sociedade possa entender o
consumo da maconha de forma mais madura e consciente e deixar
de assistir no noticiário preocupantes e recorrentes
acontecimentos – chacinas em favelas, morte de policiais,
balas perdidas, corrupção, extorsão,
agressões a universitários e proibições
de manifestações – que indicam, dia
após dia, a extinção da nossa liberdade.
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Lucas
Buzatti é jornalista desde moleque, mas
só foi descobrir a profissão mais tarde. Cismado
a escritor, é apaixonado e curioso por contracultura,
cultura pop, música, cinema e literatura. Acredita
que o bom jornalismo deve ser feito com emoção
e criatividade, e idolatra Hunter S. Thompson. Tem o péssimo
hábito de escrever muito, até mesmo em descrições
de pé de página. Passa por aqui quinzenalmente
às terças-feiras. Fale com ele: lbuzatti@yahoo.com.br
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