
25/06/08
Assalto em BH
Fim de expediente. Hora de pegar
o ônibus, chegar em casa, comer alguma coisa e capotar
na cama. Enquanto espero no ponto, acendo um cigarro e reflito
sobre o que jantar. Lasanha de microondas ou omelete? Macarrão
ou sanduíche? Refrigerante ou suco? Cerveja de sobremesa
ou não? É bom ter um tempo para não
pensar só em problemas complicados de serem resolvidos.
O monstro azul chega,
transbordando proletariados cansados como eu. Quando o coletivo
freia, soltando aquele ganido irritante, a moçada
se alvoroça, lutando para tentar adivinhar onde ele
vai estacionar, pra subir rápido e garantir um lugar
mais vazio. Perco; ele pára lá na frente.
Misturo-me ao bando e entro. Hoje vai demorar, está
lotado.
Uma menina bonita (que
me parece familiar) se oferece para segurar a minha mochila.
Adoro quando isso acontece. Aceito e agradeço. Volto
a viajar na comida. Estou entre a lasanha e o macarrão.
Vai ser suco, já decidi. E a cerveja também
vai rolar: tem jogo do Galo mais tarde, estava esquecendo.
Cacete, hoje vai demorar mesmo! Tudo congestionado. Li no
jornal que as concessionárias estão de vento
em popa com as vendas de carros, que não param de
aumentar. Dá pra perceber. Mas ainda tem um contingente
considerável de gente sem carro, eu acho. Pelo volume
nos ônibus também dá pra perceber. Aí,
é só jogar tudo isso nas ruas e avenidas –
pequenas e sem estrutura –, somar a educação
e a calma dos motoristas mineiros, e pronto! A receita perfeita
para um trânsito agradabilíssimo.
Melhor pensar no rango
ou olhar para a menina. Faz o tempo passar mais rápido.
Tenho certeza que já vi essa porra dessa menina antes.
Acho que ela também já percebeu que me conhece,
mas também não lembra de onde, ou está
com vergonha de conversar. Odeio quando isso acontece –
ficar tentando lembrar de alguma coisa aparentemente fácil.
As lembranças ficam batendo na trave, mas não
entram. Nome de filme, então, é chato demais
de esquecer. Lasanha, decidido.
Beleza, na Praça
Sete desce muita gente. Só agora vai dar para pagar
a passagem e passar lá pra trás. Sentar ainda
nem pensar. Minha mochila. Obrigado, menina-que-eu-conheço-de-algum-lugar.
O trocador parece o Tião Macalé e escuta um
forró de arder os ouvidos, felizão. Vai entender.
Admiro gente assim. Eu, que já estou indo embora
para casa, com essa cara de bunda, e o cara, no meio do
expediente, exibindo esse sorriso constante, com os dentes
maltratados.
Cochilo em pé.
Cena feia pra burro, ainda mais com o ônibus cheio.
Tinha um moleque rindo quando os olhos abriram. Ele ficou
sem graça, aí quem riu fui eu. Se fosse eu,
criança, também ia rir e ainda ia apontar.
Minha mãe ficava puta quando eu fazia isso. Opa,
a mãe do moleque deu sinal, vou sentar. Agora dá
até para cochilar um pouco, sentado, “em paz”.
O ritmo com que a cabeça bate, levemente, no vidro
do ônibus me adormece. Acordo, de sobressalto, assustado.
Quase passo do ponto. Dou sinal e desço.
Hora de suar um pouco,
subindo a rua que lembra uma parede de escalada. Dizem que
lá em Brasília é tudo plano, nada de
subida. Maravilha de lugar. Um camarada com a camisa do
Galo vem subindo também, mais no pique que eu. Ele
também estava no ônibus, coitado. Ele vai me
ultrapassar, está vindo bem mais rápido. Mas,
de repente, muda o ritmo.
Ele freia, fica lento
como eu, logo atrás de mim e anuncia o assalto, falando
baixo, pedindo só o celular. Encosto no portão
de uma casa. Já até acostumei; é só
não reagir, ficar tranqüilo, trocar idéia.
Mas vai ficar complicado pagar duas prestações
por mês de dois celulares que doei forçadamente
a ladrões. Resolvo argumentar. Ao olhar para o cara,
porém, tenho a mesma sensação que tive
com a menina. A diferença, óbvio, é
que nele não tem nada de bonito. Tem a cabeça
muito grande, sobrancelha grossa e cavanhaque, o rosto todo
furado pelas marcas de acnes, quase tão feio quanto
o Tião Macalé trocador. Ele também
percebeu que me conhece e abaixou a cabeça. Cabeça,
cabeça... Cabeção!
– Peraí,
você é o Cabeção, que olha carro
ali na rua do Breno! – desarmo-o.
– Puta merda,
sabia que te conhecia de algum lugar...
A testa franzida e
a cara de bandido dão lugar a um rosto ruborizado
e arrependido consigo mesmo pela falta de atenção.
Ele conhece o Breno há anos, e a família toda
dele, não tem nem como continuar. Assalto frustrado.
Num misto entre raiva e pena, questiono:
– Quê isso,
cara! Roubando?
– Ta difícil
demais, “zé”. A grana tá cada
vez mais curta e em casa o bicho tá pegando. Foi
mal mesmo, se tivesse lembrado que era amigo do Breno...
Como cê chama mesmo? – ele tenta amenizar.
- Lúcio - eu
respondo. – Tem nada a ver não. Tá ruim
pra todo mundo. E o Brenão, tem visto muito?
– Uai, quase todo
dia! – ele se anima.
- Fala que eu mandei
um abraço.
Ele volta a ruborizar
e nega o pedido, dizendo que não teria coragem de
contar o caso ao Breno. Digo que não precisa. Basta
falar que me viu na rua, no Centro. É o nosso segredo.
Ele agradece, constrangido.
– Hoje vai dar
Galo, não vai? – agora sou eu quem quebra o
gelo.
– Nem me fala!
Tomara, né, com esse time do Atlético...
– Ah, mas acho
que hoje vai, não é possível! O outro
time é ruim demais...
Assim, passamos mais
alguns minutos conversando sobre futebol, até que
vejo minha vizinha subindo a rua e o assunto muda. Cabeção
é peça-rara, tem um jeito de falar engraçado.
Mas meu estômago ronca e me lembro da lasanha. Despeço-me
do camarada, só mais um pobre-diabo. Feio, pobre
e atleticano. Como eu, como nós. Ele volta às
desculpas, com os olhos cheios d’água. Dispenso-as,
sorrindo, e lembro-o de falar com o Breno.
– Pode deixar!
Não vou esquecer! – ele assegura.
– Beleza, qualquer
dia apareço lá na rua. Até!
Chega de papo
fiado. A fome está negra e uma bela lasanha me aguarda
no freezer. E ainda tem cerveja e jogo do Galo depois. Ai,
ai, só em Belo Horizonte mesmo. Só nesse ovo
de cidade, onde todo mundo parece estar conectado por um
amigo / conhecido / primo / colega de trabalho. Até
em situações escabrosas como essa. Pelo jeito,
não são apenas as nossas ruas que não
se parecem com as de Brasília – nossos ladrões
também são bem diferentes.
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Lucas
Buzatti é jornalista desde moleque, mas
só foi descobrir a profissão mais tarde. Cismado
a escritor, é apaixonado e curioso por contracultura,
cultura pop, música, cinema e literatura. Acredita
que o bom jornalismo deve ser feito com emoção
e criatividade, e idolatra Hunter S. Thompson. Tem o péssimo
hábito de escrever muito, até mesmo em descrições
de pé de página. Fale com ele: lbuzatti@yahoo.com.br
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