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Baby Boom
     
 
 
     

O que você faria com um milhão? Essa pergunta clássica era minha preocupação às 9h da manhã, quando dormia um sonho sensacional, lotado de alegria, risadas, senhoras aos gritos, Sílvio Santos e minha conta cheia de grana. Agora, uma hora depois, minha maior esperança financeira é um número desconhecido.

 

16/07/08
É ritmo de festa

“Valendo 500 mil reais! Posso perguntar? Má oi!”, disse o Sílvio enquanto a platéia gritava, e eu, apreensivo, tentava lembrar qual pensador escreveu sobre a lendária Atlântida.
- É isso mesmo. Letra “cê”, Sílvio. Platão.
- Certa “respostammm”!

Naquela mistura angustiante entre a felicidade dos 500 mil e o medo da próxima pergunta – ficar com o dinheiro ou arriscar tudo por um milhão? – de repente, de supetão, os olhos abriram, dando lugar à imagem do ventilador rodando, atingido pelos primeiros raios de sol da manhã. Nada de pessoas eufóricas, nem música de suspense. Agora o som ambiente é o barulho do despertador. Dou aquela olhada para os lados, chocado, tento obter uma confirmação de que aquilo é mesmo o real. Jeito cruel de acordar um brasileiro desempregado, sem grana no bolso. Exatamente na hora do milhão. “Acorda, otário! Hora de procurar emprego! Háhá, híhí!”, dá até pra imaginar o Sílvio.

Coloco na opção “soneca”, mais cinco minutos. Quem sabe o sonho não volta? Que nada. Os cinco minutos passam em um piscar de olhos, literalmente. Sem escapatória – hora de encarar a realidade, sem direito a ajuda dos universitários ou das cartas, e com a carteira bem menos gorda que a do sonho. Uma chamada não atendida, o celular me comunica. Número desconhecido. Nada feito, sem créditos para retornar. Mas a dúvida é desesperadora. E se for algum retorno, alguma oportunidade de emprego? A interrogação martela minha cabeça até que, finalmente, levanto da cama, decidido a ir até a banca de jornal comprar um cartão telefônico para descobrir o remetente da ligação perdida.

A espelunca continua do mesmo jeito. Tudo sujo e desorganizado, como de costume. A faxina é por minha conta, e não sou um doméstico dos mais dedicados. Ao centro do quarto nota-se uma montanha de roupas que começa a ser molhada pelos pingos de uma nova goteira, gerada por uma infiltração antiga, que enfeita as paredes cinzas e sujas. Pelo menos a água não cai no chão, nem precisa do balde. No banheiro, confiro minha cara inchada de ressaca no espelho, escovo os dentes e dou uma mijada: o repetitivo rito matinal. A geladeira se mantém quase vazia. Um resto de leite, alguns ovos, um vidro de catchup vazio e duas maçãs. Café da manhã: meio copo de leite, um ovo frito e uma maça. Saúde é o que interessa.

Alimentado, desço em busca do cartão telefônico da esperança. Depois de um ano enviando currículos sistematicamente, ganhando portas na cara e desculpas esfarrapadas de todos os tipos, qualquer possibilidade de um “sim” é assustadoramente empolgante. A dona da pensão, uma gorda exageradamente tosca e antipática, varre próximo ao portão e impede a minha passagem. Esbanjando feiúra e com uma voz incrivelmente irritante, me cobra mais uma vez o dinheiro do mês, com a ameaça constante da dispensa.
– “Essa semana rola um emprego, Dona Elisângela. Tenho certeza”.
– “Eu quero só ver”, responde rabugenta.

No caminho, um camarada estranho que eu nunca vi na vida me cumprimenta do nada. Franze a testa, abaixa as sobrancelhas e acena discretamente, como se ninguém pudesse testemunhar nosso encontro. Um fenômeno bem curioso que une duas situações engraçadas: o jeito peculiar que cada um tem de cumprimentar os outros – quase uma linha mestra da personalidade humana –, e a incrível gama de pessoas que se cumprimentam sem se conhecer. Pelo menos comigo essa última é cotidiana. Com acenos, sorrisos, ou mesmo falas. Sempre topo com algum conhecido que não conheço. Devo parecer alguém famoso. Quem sabe não me viram no Show do Milhão?

O orelhão era marcado por anúncios e mensagens pessoais: “Sheila, morena gostosa, topa tudo, 96cm de busto. 9457-0089”, “Wesley, você é um filho-da-puta!”. Porra, Wesley, o que você andou aprontando? Tento discar o número do telefone, mas vacilo com as teclas difíceis do orelhão. Desligo. Tento de novo e dá ocupado. Tensão. Suor na mão. Coração acelerado. Idéias na cabeça. Resolvo fumar um cigarro antes de tentar a próxima ligação, para quebrar a ansiedade.

Penso no Show do Milhão. O que você faria com um milhão? Essa pergunta clássica era minha preocupação às 9h da manhã, quando dormia, em um sonho sensacional, lotado de alegria, risadas, senhoras aos gritos, Sílvio Santos e minha conta cheia de grana. Agora, uma hora depois, minha maior esperança financeira é um número desconhecido. Tento de novo, agora assim começa a chamar. E atende.
- “Alô”, uma mulher responde quase gritando, apressada, com o barulho de pessoas que conversavam no fundo.
– “Oi. Olha só, tinha uma chamada não atendida desse número no meu celular. Queria saber quem era”.
– “Oi!”, ela grita. “Espera aí, vou te ligar em um instante, deixa eu só sair dessa barulheira!”.
– “Okay”.

Nervosismo e ansiedade. Quem era no telefone, o que estava acontecendo? A memória puxa as lembranças das inúmeras entrevistas de emprego e seleciona as melhores, as que mais gerariam chances. São poucas, infelizmente. Não sou dos melhores em entrevistas de emprego. Gaguejo, tremo, rôo unha, falo merda. O celular toca. Respiro fundo.
– “Rogério? Onde você tá, porra?! Não vai vir no seminário?!”, a mulher já chega gritando, cobrando a minha presença. Aliás, a do filho-da-puta do Rogério.
– “Não tem Rogério nesse número, minha amiga. Esse telefone é do Lúcio...”, respondo desanimado, quase em choque.
– “Então perdão, querido, foi engano”.

Não é possível. Um dia com duas grandes pequenas frustrações em menos de duas horas. De Show do Milhão à Pegadinha do Mallandro. E ainda gastei com o dinheiro do cartão. O jeito é voltar para casa e dar uma relaxada. Hoje vou me dar férias dessa procura desesperada. Que se dane aquele monstro de mulher que só sabe me cobrar. Hoje vou ficar numa boa. Quem sabe não alugo um bom filme? Fazer uma fumaça ou tomar uma cerveja, se ainda tiver sobrado uma grana reserva. Amanhã é outro dia, a batalha continua. Apesar de tudo Sílvio, quer saber? Mesmo desempregado e sem um milhão, hoje vou me dar o luxo de ficar em ritmo de festa.

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Lucas Buzatti é jornalista desde moleque, mas só foi descobrir a profissão mais tarde. Cismado a escritor, é apaixonado e curioso por contracultura, cultura pop, música, cinema e literatura. Acredita que o bom jornalismo deve ser feito com emoção e criatividade, e idolatra Hunter S. Thompson. Tem o péssimo hábito de escrever muito, até mesmo em descrições de pé de página. Fale com ele: lbuzatti@yahoo.com.br

   
 

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