
10/08/08
Em águas
profundas
O cineasta David Lynch veio às montanhas de BH
contar um pouco mais sobre seu processo de criação
artística
Apesar de assustadora,
a fila que contornava o espelho d’água na área
externa do prédio da Reitoria da UFMG, na última
quarta-feira, 6/8, mantinha-se extremamente organizada.
Afinal, todos que ali estavam – de pé, atingidos
constantemente pelos fortes raios de sol da manhã
– ansiavam pela oportunidade democrática de
ver e ouvir o brilhante cineasta (pintor, escultor, fotógrafo,
escritor e compositor) norte-americano David Lynch. Convidado
pela UFMG, por meio do projeto Sentimentos do Mundo, Lynch
veio ao Brasil para participar da conferência “Consciência
e processo criativo” e divulgar seu recém-lançado
livro Em águas profundas: criatividade e meditação.
Uma horda de aproximadamente
700 pessoas – entre cinéfilos, entusiastas,
tietes e curiosos – compareceram com antecedência
ao evento, marcado para as 10h45. Após um atraso
perfeitamente explicável, a conferência, diga-se
de passagem muito bem organizada (foram colocados telões
e cadeiras nos dois saguões da Reitoria, para que
todos pudessem participar), teve início às
11h15, com término marcado para as 12h45, devido
à apertada agenda do cineasta.
Realizada a abertura
da solenidade, a professora Maria Esther Maciel, da Faculdade
de Letras, fez uma apresentação sobre Lynch,
contando um pouco sobre sua vida e obra. Apesar de muito
floreado e prolixo, o relato buscou fazer um resgate cronológico
dos filmes do cineasta, explicando as principais características
da estética linchyana e contando um pouco sobre sua
trajetória artística. A palavra, que todos
esperavam ser passada ao cineasta, foi, então, dada
ao professor Heitor Capuzzo, da Escola de Belas-Artes, que
apresentou um texto recheado de elogios, tendo como pano
de fundo uma vídeo-montagem com cenas dos filmes
de Lynch. O texto, apesar de um tanto quanto longo e cansativo,
emocionou Lynch, que elogiou a apresentação
do professor e disse, modesto, não saber que era
tudo aquilo.
Extremamente educado
e objetivo, Lynch optou por não fazer nenhum discurso,
e sim partir diretamente para as perguntas da platéia.
Dentre diversas pérolas, sempre muito polido, o cineasta
demonstrou que sabia muito bem direcionar o debate, sem
qualquer falta de educação. Sob um clima descontraído,
ele falou bastante sobre a concepção de suas
idéias, que posteriormente são transformadas
em filmes. Para Lynch, o mundo é formado por idéias,
tudo são idéias. O que se deve fazer é
apaixonar-se por elas e manter-se firme no objetivo principal,
porém sempre em alerta quanto a possíveis
mudanças no percurso. Lynch pontuou que as idéias
são concedidas de forma diferente, para cada pessoa.
Contou que, para ele, por exemplo, pescar é uma atividade
que aciona a criatividade.
Lynch ressaltou ainda
que as idéias e “viagens” psicológicas
podem ser abstraídas de diferentes formas, dependendo
de cada indivíduo, situação ou ambiente.
Pontuou, por exemplo, que a experiência de assistir
a um filme em uma sala de cinema, onde a tela grande, o
som e o ambiente escuro criam um universo particular, acaba
fazendo com que a absorção da obra seja totalmente
diferenciada. Respondendo às perguntas da platéia,
Lynch falou ainda sobre meditação, positividade,
o futuro do cinema, a internet e suas posições
políticas.
Apesar das boas considerações
de David Lynch, as perguntas enfraqueceram consideravelmente
o evento. Era claro que havia ali um frisson intelectual
e pseudo-intelectual marcado por tentativas de demonstração
de conhecimento, auto-propagandas acadêmicas, teorizações
estúpidas da obra do cineasta e, (pasmem) até,
tietagem.
Contudo, Lynch soube
sair com classe de diversas e constrangedoras situações.
As primeiras pérolas ficaram a cargo do próprio
cineasta, que refutou as perguntas prolixas da professora
Maria Esther Maciel com objetividade e bom-humor. Após
uma pergunta de cinco minutos, sobre como Lynch se relacionava
e fazia a inversão da estética acadêmica
surrealista, ele respondeu rindo: “I don’t know”.
E a platéia caiu na risada. Após outra pergunta
longa, sobre seus diálogos e relacionamentos com
diretores contemporâneos, Lynch rasgou: “I have
no dialogs, i have no relationships”. Novamente, a
risada se instaurou.
Dando seqüência
ao freakshow, um estudante chegou a pontuar que as “viagens”
criadas pelo cineasta dão impressão de que
ele “fuma um, ou toma chá de cogumelo”,
comentário ignorado com muito bom-humor por Lynch.
Outra estudante, quase aos prantos, pediu a oportunidade
de apertar as mãos do gênio, concedida com
tranqüilidade. O ponto alto da “festa”
ficou a cargo de uma excêntrica estudante que elogiou
o cabelo de David e soltou a pérola máxima:
“Quem me dera fisgar um peixão desses”.
Atingidos pela aguda vergonha alheia, a público ficou
sem reação e ela fez questão de explicar:
“Eu estou dando uma cantada nele em público,
gente”. Apesar das risadas, a menina, ainda não
contente, fez uma pergunta sobre meditação
em que resumiu seus vinte e poucos anos de contato com a
arte, até chegar nas “experiências transcendentais
com o Thai Chi Chuan”, arrancando gargalhadas do público.
Apesar da perda de tempo
com perguntas desnecessárias e tentativas desnecessárias
de teorização da obra de Lynch, a conferência
se embalou em um clima bem-humorado, e mostrou ao público
um David Lynch de atitudes pessoais dignas de sua imensidão
artística. Objetivo e polido, competente e genial,
bem-humorado e centrado. Uma mistura de características
pessoais, somadas à extrema autenticidade artística,
que nos fazem concluir como o sucesso de seus filmes é
merecido.
Filmografia (Longas-metragem)
2006 – Inland
Empire (Império Dos Sonhos)
2001 – Mulholland Drive (Cidade Dos Sonhos)
1999 – The Straight Story (História Real)
1997 – Lost Highway (A Estrada Perdida)
1992 – Twin Peaks: Fire Walk With Me (Twin Peaks:
Os Últimos Dias De Laura Palmer)
1990 – Wild At Heart (Coração Selvagem)
1986 – Blue Velvet (Veludo Azul)
1984 – Dune (Duna)
1980 – The Elephant Man (O Homem Elefante)
1977 – Eraserhead
Site oficial
www.davidlynch.com
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Lucas
Buzatti é jornalista desde moleque, mas
só foi descobrir a profissão mais tarde. Cismado
a escritor, é apaixonado e curioso por contracultura,
cultura pop, música, cinema e literatura. Acredita
que o bom jornalismo deve ser feito com emoção
e criatividade, e idolatra Hunter S. Thompson. Tem o péssimo
hábito de escrever muito, até mesmo em descrições
de pé de página. Fale com ele: lbuzatti@yahoo.com.br
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