
21/05/07
O baile de máscaras
Ela andava sozinha em meio àquela multidão de mascarados. E por não reconhecer ninguém, já que todos estavam escondidos por trás de suas excêntricas fantasias, não se reconheceu em nenhuma daquelas representações sombrias talhadas nos falsos rostos. Ela se perdeu, teve um lapso de alucinação ao não se perceber, ao não se saber. Era como se, por alguns instantes, não fosse ninguém. Havia espelhos por toda parte, o que dificultava sua visão, pois seu reflexo se confundia, se perdia. E foi nessa epifania de maconha no famoso baile de máscaras da cidade que seu olhar se cruzou com o de um conhecido. Ele não era bem um conhecido, mas teve uma forte certeza de reconhecimento em seus olhos, mesmo estando estes por detrás de buracos pretos e profundos que tinham a finalidade de deixar ver e de não deixar ser visto.
Os dois se buscaram feito loucos, como se aquele estranho baile não estivesse mais ali. Venha, ele disse no meu ouvido, quero segurar na sua mão, olhar nos seus olhos e te fazer rir. Ele não fazia idéia de como era o seu rosto e ela, muito menos, de como era o dele. Mas isso não tinha a menor importância, já que suas palavras bastaram para fazer seu coração acelerar e sua face enrubescer com o calor emergente do sangue que corria agora rápido e vivo. E então ela que, até aquele momento, era apenas uma expectadora e queria desesperadamente se livrar de tudo e sumir do mapa, viu sua vida se abrir num dicionário subjetivo de significados inexplicáveis, mas totalmente inteligíveis. O tal dicionário, com suas páginas carcomidas pelo tempo em que ficou guardado nas mais profundas gavetas do inconsciente, foi vomitando, numa clareza impressionante, sentidos que se espalhavam em sua frente como peças de um quebra cabeça que, aos poucos, se encaixavam numa dança sincronizada entre significante e significado, obscuridade e clareza, destino e coincidência, matéria e energia, razão e emoção, tudo e nada.
Inebriada pelos sentimentos que a invadiam, ela não mais se preocupava com toda a seqüência real abstrata de máscaras bizarras e se deixou levar pelo jovem desconhecido numa certeza estranha, imponente. Foi uma vertigem, uma experiência que, embora totalmente física, tinha algo que insistentemente beirava um místico latente. Entraram num quarto escuro e tiraram logo as máscaras, num desejo urgente de se tornarem transparentes, evidenciando seus vícios e virtudes. Ele a fitou com os olhos ardentes e a puxou para si com as duas mãos. Seus lábios e peles se encostavam num toque que tinha algo de macio e violento, numa intensidade jamais sentida. Não importava o chão duro, o carpete áspero que lhe queimavam a pele, essas coisas nem mesmo foram percebidas.
Tudo se tornou tão claro e envolvente que ela sentiu vontade de congelar o tempo e de congelar-se naquele momento. Só que o tempo também não era mais o mesmo. As horas começaram a correr ou a arrastar-se, quebrando toda a tentativa restante de certa linearidade. Tudo ali se bastava por si só e não havia uma ansiedade, uma expectativa, um desejo efêmero mundano que interrompesse aquele transe sóbrio de consciência. A música tocava como uma trilha sonora cuidadosamente sintonizada com cada ato, expressão ou sentimento. Corpo e matéria nada mais eram do que um meio de se chegar ao êxtase e, na medida em que compreendiam isso numa lucidez absoluta, o eterno conflito existencial entre acreditar apenas na matéria e, ao mesmo tempo, negá-la na tentativa do desapego pelas coisas supérfluas do mundo, se resolveu de maneira simples e arrebatadora.
Era um prazer de 100% de envolvimento, coisa que só havia sentido quando criança, impossível em experiências rotineiras. Ela havia lido certa vez que o mesmo pessimismo que nos leva a questionar e desacreditar nas coisas da vida, no jeito construído de enxergar as experiências, e nos faz pensar em suicido perante as chagas do mundo, serviria também para libertar e propiciar o verdadeiro prazer pela realidade que habita por detrás do simulacro. E agora tinha a sensação nítida daquelas palavras assustadoramente proféticas e subversivas. Óbvias agora, extremamente óbvias. Quando ele dissera que o amor não passava de uma criação dos poetas, introjetada pelo senso comum no imaginário humano sob a insígnia do consumo de pessoas, sentimentos e coisas ela achou exagero, embora, no fundo, tivesse consciência de que a rejeição de tal teoria era uma espécie de auto defesa desesperada. Afinal, era muito duro e angustiante pensar que nem o amor existisse de fato e que não passava de mais uma artimanha cultural.
Mas foi concebendo o amor e o sexo da maneira mais visceral possível com aquele desconhecido, que ela tomou consciência de que isso realmente não possuía nenhum vínculo com aquele amor idealizado, romântico e doente de posse, de prisão, de consumo, de plástico. Havia ali defeitos deliciosamente humanos e reais, os hálitos não tinham sabores artificiais e os cheiros traduziam exatamente os movimentos de suores e odores animalescos do prazer. A ausência de artifícios e o fato dele em nada representar o príncipe encantado e não precisar preencher nenhum ideal narcisista forjado, serviu para lhe mostrar a mediocridade de todos os clichês sobre a felicidade e afirmá-los como mais uma maneira desesperada de suprir e dar sustentabilidade às experiências vazias que permeiam nossa sobrevivência e relacionamentos.
Quando o dia ameaçou amanhecer ela logo percebeu o estrago. Algo em sua estrutura vital tramada se quebrou sem chances de reparo. Deixou de ver sentido no baile lá fora mas, ainda assim, após se despedir daquele estranho conhecido com um beijo terno de uma quase gratidão, vestiu sua fantasia e se misturou novamente à multidão mascarada. Com a violenta diferença de que, agora, ela conseguia enxergar além das representações que ludibriavam a todos, além do limite da ignorância confortável.
Leia também
07/05/07 - Mais uma para a pauta do boteco
23/04/07 - Compre já o seu
16/04/07 - Devaneios de quem não tem nada a dizer
09/04/07 - Vaca no almoço e Jesus na sobremesa
02/04/07 - A pior das espécies
26/03/07 - Amélia que era mulher de verdade
19/03/07 - Underground da alma
12/03/07 - Nos meus tempos...
05/03/07 - Precisamos realmente disso?
26/02/07 - Papa, Matisse e Mickey Mouse
__________________________________________________
Lira Turrer é
jornalista e escritora. Apaixonada pela literatura e inspirada
pelos fatos corriqueiros que permeiam a comédia do
cotidiano. Escreve aqui todas as segundas. Fale com ela:
liratd@yahoo.com.br
|