
19/03/07
Underground da alma
O bufê era ótimo, a champagne geladinha e muito bem servida. Mas tinha a maldita banda. Quis matar quem inventou essa modalidade de banda: A banda de baile. Há coisa mais brega e sem personalidade no mundo? Aquilo ali só não era pior do que trio elétrico em carnaval fora de época – o trio elétrico é o verdadeiro cavalo de tróia. Odeio Dodô e Osmar por nos ter agraciado com tamanho presente de grego! E também nunca gostei de pessoas de abadá e muito menos daqueles seres asquerosos que saem agarrando qualquer mulher que vêem pela frente. Prefiro o capeta a me submeter a uma coisa dessas.
O caso é que não era carnaval, mas, olhando bem, o que eu via na minha frente não se distinguia muito da visão do inferno. Quando eu pensei que poderia piorar... Pronto, piorou. Após um ótimo intervalo da banda, em que eu dancei It´s raining man achando a melhor música do mundo, aqueles sujeitos voltaram ao palco, com uns trajes ainda mais bregas, e começaram a tocar Axé. A coitada da vocalista se achava a Ivete Sangalo. “Coitada” por dois motivos. Primeiro porque ela não se parecia em nada com a axezeira baiana e, depois, porque não há nada mais medíocre do que sonhar em ser a Ivete Sangalo. Porra, não dá pra querer ser alguém melhorzinho, não?
Pedi socorro para o garçom, o único capaz de me dar um remédio para tolerância. Ele encheu a minha taça educadamente. “Pode completar” me peguei dizendo. Eu bebi tudo rapidinho e esperava pelo efeito, já me imaginando rebolando e aprendendo coreografias “a bundinha pra lá e pra cá, o peitinho não sei lá das quantas, a perninha pra cima...”
Na terceira taça consecutiva, olhei para o palco e a tolerância continuava zero. O vocalista cantava alguma coisa como “sou guerreiro, sou praieiro, sou do rio de janeiro” e todo mundo fazia uns gestos estranhos com as mãos pra cima. Todos, como se fosse um hino. E eu nem mesmo conhecia aquela música ridícula.
Quando os dançarinos entraram no palco rebolando, pedi logo um wiskhy. Aqueles homens fortes com roupas justas contrariavam todos os meus critérios do padrão de qualidade masculina. “Regra número 1: Nunca, jamais, em nenhuma hipótese, fique com um homem que dance Axé.”
Eu procurava desesperadamente por uma luz no fim do túnel, algo que pudesse me divertir além da bebida, pois, caso contrário, terminaria como a tia de vestido roxo que passou rapidamente de extravagante na pista para vomitante no banheiro.
E não é que no meio daquela gente estranha eu achei um ex-namorado? Não era bem um ex-namorado, mas era um ex-qualquer-coisa-do-tipo. Ele estava acompanhado. Melhor ainda, pensei. Diversão proibida, imoral e garantida. Mulher tem dessas coisas, sabe? A gente se diverte muito torturando pobres namoradas inseguras. E não adianta torcer o nariz, querida leitora. Todas nós gostamos, mesmo que inconscientemente. É fato.
A essa altura já me sentia bonita o suficiente para tirar o infeliz do sério. Ele ficou tão perturbado ao me ver que até rezou o credo. Sua inquietação com a minha presença me encheu de coragem para executar aquele planinho sórdido de sedução, em nada acontece e o coitado fica sonhando com o que poderia acontecer.
E ele caiu, claro. Achou equivocadamente que aqueles olhares sedutores e até meio sacanas eram somente para conquistá-lo. Ele acreditou piamente que, se a mala da sua namorada não estivesse na cola, ele iria passar uma noite inteira de sexo selvagem com direito a tudo o que não se faz com as namoradas. Mas também, pudera.
Modéstias à parte, eu era, ou pelo menos estava, muito mais gostosa do que a acompanhante – essa é uma tática feminina já bem batida: a gente fica gostosa quando se sente como tal. E todo mundo acredita.
Eu passava pra lá e pra cá lançando olhares provocantes e ele via algo de sexual até mesmo no meu simples ato de levar a taça até a boca. Eu era, para ele, como um capeta no reino das tentações. Um capeta de vestido vermelho que deixava as formas femininas levemente à mostra estimulando os piores pensamentos.
E de repente, eu realmente personifiquei o pecado. Fui má, egoísta, brinquei com os sentimentos alheios da forma mais baixa possível e, o pior, me diverti muito com isso. O excesso de álcool e uma banda de axé, misturados à minha vaidade e ao meu vazio, resultaram nisso.
É engraçado como as coisas acontecem.
Eu, que me achara tão superior a tudo aquilo, desprezando a todos e destilando os piores preconceitos, cheguei em casa, sozinha, com uma sensação horrível. Um misto de angústia e vergonha. O meu plano foi bem, eu até consegui uma discórdia entre o casal. Porém, removendo a maquiagem e olhando-me no espelho, enxerguei-me a pior das espécies.
De cara limpa e alma meio suja, deitei-me e deixei o peso de minha cabeça afundar no travesseiro.
Eu quis sonhar em ser a Ivete Sangalo, mas talvez isso fosse digno demais para mim.
Leia também
12/03/07 - Nos meus tempos...
05/03/07 - Precisamos realmente disso?
26/02/07 - Papa, Matisse e Mickey Mouse
__________________________________________________
Lira Turrer é
jornalista e escritora. Apaixonada pela literatura e inspirada
pelos fatos corriqueiros que permeiam a comédia do
cotidiano. Escreve aqui todas as segundas. Fale com ela:
liratd@yahoo.com.br
|