
11/06/07
Do que restou
Temos feito o caminho inverso, a ignorância é nosso lema e a superficialidade é nosso projeto de vida. A gente cresce e percebe o quanto é importante andar bem alinhado e usar sapato que, além de promover a matança dos crocodilos, cobras e vacas, ainda esmagam a porra do dedinho dia todo. E a cada vez que eu me encontro com você, eu percebo o quanto está tudo errado. A gente agora vai a lugares sofisticados, come saladinha e acha que está dentro de um seriado de TV. E sabe o que é engraçado? Ser adulto é parar de questionar as coisas e se enquadrar na corrida pela vida bem sucedida. Bem sucedido em que? Você corre pelo que mesmo? Já nem se lembra mais, né? Claro que não, você está demasiadamente preocupado com as coisas idiotas que permeiam sua existência lamentável. Você não tem tempo para se lembrar de que essa coisa de datas comemorativas foi invenção do comércio para enganar trouxa porque está atrasado para comprar o presente do dia dos namorados. Depois de anos em que a gente se conhece você me vem com essa mesma ladainha de que a roupa que eu uso está fora de moda e que eu preciso ser mais descolada. E lembrar que quando éramos adolescentes só queríamos curtir a vida e beber em buteco sujo pra não gastar dinheiro. Hoje você escolhe o lugar da moda, pede um café e começa a reclamar que trabalha demais, que não tem tempo nem para ir ao salão fazer as unhas. Eu sei, eu sei que esse negócio de fazer as unhas já virou implicância minha, mas, porra, se você prefere gastar seu tempo e seu dinheiro assim com essa merda de vida adulta, me desculpe, eu compartilho disso. Você escolheu ser infeliz e o pior de tudo é que não se questiona por um minuto sequer. Será que eu estou invejando a sua vida cheia de conforto e sem conflitos existências? Em que momento de nossa amizade isso foi se quebrar de forma tão irreparável? Eu achava tanta graça em você, em seu jeito de viver, em suas roupas bacanas, em seus casos engraçados. A gente falava horas a fio assuntos corriqueiros, sobre experiências inusitadas e ria muito das coisas do mundo. Pois hoje, minha amiga, eu tive vontade de chorar. Quis chorar porque eu não tenho nada a te oferecer e muito menos você a mim. Nunca imaginei que o único elo existente entre a gente se tornaria essa porcaria de nostalgia inútil e frustrante. Fiquei a noite inteira torcendo praquele rato nojento ali do esgoto passar pelos seus sapatos novos e te fazer gritar, acordar para a vida e começar a perceber as coisas a sua volta. Olhe para os meus olhos agora e me diga quem é você porque eu não te reconheço mais. Chega de ficarmos lembrando de como as coisas eram legais e de como formávamos uma turma especial. Me poupe dos seus comentários preconceituosos e pobres de espírito. Não estou mais interessada na porra do seu namoro de plástico, na merda do seu emprego medíocre e muito menos na sua opinião fraca sobre como eu deveria cortar o meu cabelo. E também não me venha dizer que eu sou chata e que questiono tudo, discordo de tudo. Por que me perguntou então?
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Lira Turrer é
jornalista e escritora. Apaixonada pela literatura e inspirada
pelos fatos corriqueiros que permeiam a comédia do
cotidiano. Escreve aqui todas as segundas. Fale com ela:
liratd@yahoo.com.br
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