
09/04/07
Vaca no almoço e Jesus na sobremesa
A crucificação sempre me tocou de forma especial. Jesus, com seus cabelos claros e sua pele alva, levemente tingida de sangue, olhava bem nos meus olhos e dizia: eu te escolhi filho meu, ainda hoje no paraíso comigo estarás. Eu então rasgava suas vestes, o virava de quatro e puxava vorazmente seus quadris contra minha virilha em chamas. Fodia Cristo por horas a fio. Aquilo era realmente o paraíso, ele estava certo. Acordava todo suado e gozado.
Dizem que Freud explica, pois eu duvido. Apostaria 50 gramas do meu pó com aquele velho safado que ele não solucionava a origem do meu tesão pelo mensageiro de Deus. Posso até imaginar os olhos brilhantes do pervertido doutor frente a tal caso. Certa vez uma psicanalista maconheira me disse que isso era resultado da repressão sexual que sofri na infância, por partes dos meus pais religiosos, pelo fato de sempre ter tido tendências homossexuais. Grande bobagem. Psicanalistas não passam de picaretas safados que ganham muito dinheiro amenizando os eternos vazios da burguesia.
Acho que tudo começou quando o vizinho matou a nossa vaca. Fizemos um churrasco e então eu entrei em contato, pela primeira vez, com a lógica dual cristã: o prazer e a culpa. Aquilo foi uma experiência quase antropofágica, pois eu comia, com barbárie, a carne da vaca que era praticamente um membro da família e que, por muitos anos, nos deu boa vida com seu leite e com o dinheiro arrecadado pela venda deste. Como nos rituais indígenas em que os corpos dos pajés são ingeridos pela comunidade com o intuito de se absorver a inteligência dos sábios mortos, eu chupava todos os conhecimentos daquele incrível ser que viveu uma vida vadia, de ócio, tranqüilidade e desprendimento.
Foi a partir daí que comecei a descobrir que Deus é a pior das prisões, que o trabalho é fonte de frustração humana e que o inferno é uma grande invenção manipuladora de gente ignorante. Passei de castrado, limitado e enclausurado à um filho da puta cheio de prazer pela vida besta, mundana e desocupada.
Mas voltando à vaca fria, quando então a nossa fonte de sustento virou merda no intestino da família, meu pai incorporou a ética protestante como ninguém. Enquanto eu absorvi o que tinha de sagrado naquela carne, meu pai engoliu todo o ranço e gordura saturada de valores nunca antes habitados entre nós, na antiga vida simples que levávamos antes da morte da vaca. Enxergando lucro em tudo o que via, obrigou minha mãe a se deitar com um velho babão em troca de algumas cabeças de gado. Começou seu novo negócio e hoje é dono do maior império de gado de corte do país. Moral da história: quando se quer subir na vida, progredir a qualquer preço, tudo pode virar churrasco.
Libertei-me totalmente dessa instituição ridícula chamada família porque a simples imagem do meu pai, sempre engordurado, e da minha mãe, com batom nos dentes, já me revira o estômago. Mas vez ou outra acompanho em jornais as notícias da expansão dos negócios da empresa assassina. Houve até um pequeno escândalo envolvendo meu pai num sórdido esquema de escravidão. Mas rapidamente o caso foi abafado com a contratação de uma consultoria organizacional que domesticou os funcionários com teorias da psicologia empresarial. O trabalho foi tão bem feito que não se pode distinguir mais o que é vaca e o que é gente. E o setor de recursos humanos da empresa virou referência mundial.
E assim caminha a mediocridade. Pessoas necessitadas e insatisfeitas que não se bastam, ávidas por um progresso na ilusão de que este virá através do sacrifício inútil da vida diária por um futuro que não existe.
Enquanto isso tenho vivido anonimamente e tido experiências e prazeres singulares pelas estradas do mundo. E Jesus está nessa comigo. Não me abandona, o safado. Continua deliciosamente presente nos meus sonhos luxuriosos e pederastas. E que não me deixe jamais. Amém.
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Lira Turrer é
jornalista e escritora. Apaixonada pela literatura e inspirada
pelos fatos corriqueiros que permeiam a comédia do
cotidiano. Escreve aqui todas as segundas. Fale com ela:
liratd@yahoo.com.br
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