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Olha pra mim: eu sou neguinho!. Acho que uma das coisas mais bacanas no Brasil é ter, dentro do seu conceito do que é o país, uma síntese que somos uma raça mestiça". Lenine

 

01/09/07
“Eu sou neguinho!”

Pernambucano, cosmopolita, camaleão, artesão e tecnológico. Antes de tudo, brasileiro. Lenine é do têmpero, do batuque. Do truque, do picadeiro. E do pandeiro e do repique. Do pique do funk rock. Do toque da platinela. Do samba na passarela. Dessa alma brasileira. (Lenine: Jack Soul Brasileiro)
De chinelos, simpatia e jeito bom do nordeste, o compositor, produtor, músico e intérprete, bate um papo com O Binóculo durante uma passagem de som e fala sobre o processo de criação, parcerias, e da composição da trilha de "Breu" – novo espetáculo do grupo Corpo – e outras experiências de sua carreira.


Para um músico com mais de 400 composições, imagino que a composição deve ser uma atividade ininterrupta para você. Fale um pouco sobre esse processo criativo desde quando você começa a pensar nas músicas até o momento do convite das parcerias e da entrada no estúdio.

Na verdade não tem muito início esse processo, porque é algo contínuo. Mais da metade do que componho não é para mim, mas para outros intérpretes, cantores e músicos. Então, quando tenho o estalo assim: “quero fazer um CD”, na verdade eu já comecei ele, porque eu tô sempre gravando, compondo, sempre no estúdio, testando, experimentando. Da mesma maneira você nunca acaba. Você abandona o projeto por falta de tempo porque a hora é aquela, e aí começo outra coisa... Não tem muito início nem fim dessa coisa. Para mim é como se eu estivesse compondo o tempo todo e isso realmente não pára. Foi por intermédio desse exercício da composição que eu me tornei até outras coisas, como músico, cantor, arranjador, produtor... isso tudo em decorrência desse prática.

As letras em todos os seus CDs possuem referências muito ricas de literatura, poesia, filosofia... Gostaria de chamar a atenção não somente para o rico regionalismo pernambucano sempre presente nas letras, mas também para as questões de etnia e afrodescendência colocadas com tanta propriedade nas composições. A impressão que dá é que você possui mais do que uma afinidade espontânea com tal abordagem...

Olhe para mim: “eu sou neguinho!” (risos). Uma das coisas mais bacanas no Brasil é ter, dentro do seu conceito do que é país, uma síntese que somos uma raça mestiça. Em qualquer livro de etnia, de qualquer lugar desse mundo quando se referem ao Brasil, a principal característica é a raça mestiça. Aqui o português fez filho na negra, no índio. O francês pegou a bocada também. O alemão, o nipônico... Quer dizer, nesse caldeirão cultural que é o Brasil é que está o mais interessante. Eu não faço isso como uma pesquisa, é muito mais intuitivo do que qualquer coisa. Não tenho isso no plano do consciente nem nas dosagens, tipo: “agora eu vou falar sobre etnia ou agora eu vou falar sobre...” não, não é assim. É mais orgânico do que isso, enfim, é muito fruto da minha própria experiência de vida, da minha informação, dos parceiros que estão em volta de mim. Porque eu trabalho sozinho mas, eu adoro uma parceria, talvez pela formação socialista que tenho. Tudo se dá pelo somatório das experiências e é natural que em cada composição isso seja revelado de alguma maneira. Eu me criei no Recife, uma cidade portuária, apesar ter essa identidade cultural muito forte, é uma cidade portuária. Ali conviveram, chegaram e saíram todas as culturas juntas e eu também bebi disso. Outro dado que também acho que é importante é que minha trajetória fonográfica se deu no Rio de Janeiro e não no Recife, quer dizer, é como se minha música tivesse um adjetivo: o “Pernambucano”, que muito me envaidece. Eu nasci em Pernambuco sim, mas acho que, talvez de alguma maneira isso restrinja a amplitude dessa minha música, por ser carioca também, por ser brasileira, antes de tudo.

Todos os trabalhos são marcados por experimentalismos sonoros e diálogos constantes com diversos ritmos, mas mesmo com toda essa abertura, cada disco seu tende mais para um determinado caminho, o que faz com que a obra fique redonda. A que você atribui essas diferentes fases do seu trabalho?

Eu acho que por um lado é minha curiosidade, o fato de eu ser realmente uma pessoa muito curiosa, querer ouvir e ver tudo. E o tempo não nos permite ver e ouvir tudo, mas acho que de alguma maneira isso seja revelador mesmo, é uma curiosidade que eu tenho. Outra é o fato de ter trilhado esse caminho, de ter feito essa trajetória de uma maneira muito particular, porque eu fiz escolhas na minha vida e sei dos preços dessas escolhas. Mas é tão bacana, hoje eu venho aqui, tô aqui tocando em BH, vai ser um puta público, as pessoas cantando tudo, então cai essa ficha de que aquelas escolhas foram acertadas. Eu abri mão de algumas coisas e abri outras janelas nesse “abrir mão” de algumas coisas. E assim eu continuo sentindo o mesmo prazer que eu sentia desde o início. Continua sendo um momento muito especial poder usar a música como um elo de aproximação entre as pessoas. Eu realmente viajo o mundo todo e tudo por intermédio da música e da generosidade que ela me oferece. E a minha produção tem muita intuição mesmo num processo bem orgânico, sem muita decupagem. Eu não pré-produzo as coisas. Vou fazendo... E hoje em dia com essa tecnologia digital é mais fácil porque se você não gostou, Ctrl Alt Del, apaga. Eu sempre sei aonde eu não quero ir, mas não tenho a mínima idéia de onde eu vou chegar. Então é buscoa beleza a partir do filtro que se forma com a própria experiência em benefício da canção.

E quando você está no estúdio e de repente surge uma outra idéia, talvez de alguém que você convidou para uma parceria, pode mudar tudo...

Claro, na maioria das vezes é o erro que causa o acerto. Numa passagem de som que o cara fez errado, ele descobre que o erro ficou bacana. Então não tem muito método, é estar atento e arriscar. E é tão bacana que esse risco passou a ser uma coisa associada ao meu trabalho. As pessoas que gostam do que eu faço esperam esse tipo de “se jogar”, esse tipo de arriscar. E isso é bacana porque acho que todo tipo de criador procura essa liberdade.

Como expectadora e consumidora cultural, a impressão que tenho do formato acústico MTV no geral, sobretudo das bandas de rock, é uma tentativa de domesticar o som do ponto de vista mais comercial. No seu caso foi diferente porque ao mesmo tempo em que você colocou uma orquestra no palco, teve muito peso em algumas faixas como em "Dois olhos negros" com a participação do Igor Cavaleira. Como foi essa experiência?

Antes de falar sobre a minha experiência particular nesse processo, é importante que falar primeiro sobre o MTV Acústico. Esse rótulo surgiu nos EUA. Um público que conhecia as músicas pesadas do rock teve a oportunidade de ouvir as versões diets dessas canções. Pô, no Brasil isso não cola não, cara! Porque é apenas uma marca de sucesso, realmente uma marca de muito sucesso. Então para mim foi apenas um estímulo muito bacana de exercitar a minha banda – que trabalha comigo a mais de dez anos, então, e por sermos uma banda e não um canário com vários músicos tocando em volta, no acústico eu pude vivenciar a importância que o grupo tem atualmente no trabalho que eu formato. Outra possibilidade muito bacana foi trabalhar com um pedaço da Orquestra Sinfônica de São Paulo com a área de cordas, que eu já tinha tido algumas experiências, mas nunca efetivamente me debruçado sobre isso. Outra foi poder trabalhar com o Quinteto retirado da Mantiqueira, um dos maiores ícones da música brasileira contemporânea. E, principalmente, poder trazer os amigos para o projeto como o Igor Cavalera, a Julieta Venegas, a Cristina Braga, Victor Astorga... Foi muito estimulante. O que menos pesou foi a marca e o que mais contou foi a possibilidade real de fazer um trabalho bacana e se orgulhar daquilo.

E você teve toda a liberdade?
Eu sempre tive!

Como foi a experiência de composição da trilha do Breu – novo espetáculo do Grupo Corpo? E como foi ver sua música tomar uma forma tridimensional nos corpos dos bailarinos?

Foi muito impactante. Ainda estou sobre o efeito da estréia porque o Rodrigo (Rodrigo Pederneira, Coreógrafo do Grupo Corpo) me chamou para ver um ensaio geral, ainda quando 60% da coreografia estava pronta, mas eu disse que não queria porque preferia ver o espetáculo pronto. Me impressionou muito por essa característica que você bem frisou, a tridimensionalidade daquilo. Eu pude ver claramente todo o relevo musical, todos os arranjos nos corpos dos bailarinos. Realmente um momento muito especial que ainda estou digerindo.

E como foi a criação da trilha?

Você sabe que eu chego ao cúmulo de dizer que este foi meu disco mais autoral em alguns anos? Porque o fato é que meus dois mais recentes trabalhos, tanto o MTV Acústico quanto o Incité, foram trabalhos gravados ao vivo, então me distanciei um pouco do artesanato do estúdio, de você pegar o som e espichar, esticar, processar... E eu gosto muito de fazer isso e estava, de alguma maneira, distante dessa atividade. O que me aproximou foi o fato de em 2005 ter produzido o disco da Maria Rita, do Chico César, e depois ter produzido o disco do Tcheka, que é um cara de Cabo Verde que já vai sair. Mas foi no "Breu" que pude exercitar minha autoralidade dentro do estúdio. Eu tenho muito orgulho de ter feito este trabalho, até porque todos os Pederneiras, toda a companhia, é de um carinho, de uma gentileza, de uma generosidade faraônica (risos). E isso tudo ajudou muito. Parar você ter uma idéia, o Rodrigo chegou me dizendo assim: "é você quem vai fazer a trilha, preciso de 40 e poucos minutos de música, e quando tiver alguma coisa para me mostrar, me mostre".

A partir das primeiras músicas é que surgiu a idéia do Rodrigo de trabalhar com o tema da violência nas coreografias... Então pode-se dizer que, talvez, o seu trabalho agora esteja caminhando para esse lado mais pesado, visceral, agressivo, como podemos perceber nas músicas do espetáculo Breu?

Talvez... Eu não sei não... Eu sou meio camaleão... Estou compondo mas só para o outro ano e não pretendo fazer um disco novo por enquanto. Mas gravar um disco, documentar alguma coisa é como uma fotografia que você faz de uma obra. Você pode fazer várias. Pode mudar o ângulo, fazer preto e branco, solarizar, etc. Mas são fotos. Para mim são fotos que você faz em determinado período de composição sua. As músicas para o espetáculo do Grupo Corpo foram feitas num período que minha criação tinha ver com a sua minha cabeça naquele período. Não sei bem como será o próximo disco, mas com certeza vai ser algo mais próximo do Breu, diferente dos projetos acústicos, já que será feito num estúdio.

O que você tem ouvido atualmente? Quais são os seus “cds de cabeceira” tanto da nova geração da música brasileira e gringa? Dos sons mais antigos, quais você ainda escuta com freqüência?

Eu tenho a sensação de que novo é aquilo que a gente esqueceu, por isso é que tem sabor de novo. Por outro lado, não existe novidade que resista a uma boa pesquisa bibliográfica e se você procurar, você vai ver que não é tão novo assim. Tenho ouvido muita coisa bacana e acho que a gente está num momento de descobertas de outros brasis que sempre ficaram a margem do Brasil conhecido. Durante muitos anos a gente só falou do eixo Rio-SP e hoje a gente não fala mais assim, hoje temos um pólo como Salvador, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza... E cada lugar tem suas expressões culturais, suas reportagens sonoras. Seria uma temeridade falar umas e esquecer de outras...

Veja o vídeo com a entrevista.

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Lira Turrer é jornalista e escritora. Apaixonada pela literatura e inspirada pelos fatos corriqueiros que permeiam a comédia do cotidiano. Escreve aqui todas as segundas. Fale com ela: liratd@yahoo.com.br

 

   
 

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