
03/07/08
Querida Ingrid Betancourt
Era noite quando, no
ano passado, vi no telejornal as imagens do seu estado lastimável
no cativeiro das FARC. Mal a reconheci, já que não
estava acostumada a identificar tristeza e abatimento na
sua figura. Quando me dei conta de que essa era sua rotina
há mais de cinco anos, senti aquele nó na
garganta. Pensei na sua família e fui dormir com
o coração apertado. Lembro-me de que nessa
noite o sono custou para chegar, tão grande era o
choque e a indignação de lhe ver naquelas
condições. Imaginei que todas as noites e
todos os dias eram de nó na garganta e coração
apertado para seus filhos, sua mãe.
Por mais que eu odiasse as FARC com toda a minha força,
me permiti baixar a guarda por alguns instantes daquela
noite reflexiva. Abstraí da mente a revolta contra
essa organização suja e covarde e tentei não
sistematizar as conseqüências políticas
do seu seqüestro. Quis pensar em você como ser
humano, mulher, mãe, senadora, carne e osso, pele
e osso. Quis descobrir seu mundo. Desejei que você
saísse logo desse pesadelo. Que, pelo menos, pudesse
se comunicar com os parentes. Torci para que você
tivesse várias boas lembranças nas quais se
apegar. Deduzi que um cobertor ou uma simples escova de
dentes fariam falta. E, diante apenas do que pude imaginar
– uma fatia superficial do horror da guerrilha -,
todas as divergências políticas, sociais e
ideológicas revelaram-se absolutamente insignificantes.
Afinal, que causa merece mais de quatrocentos reféns
torturados, embrenhados Andes a dentro? Por qual razão
um país inteiro deve ser aterrorizado por um grupo
de seus próprios cidadãos? Qual é o
comunismo que defende o narcotráfico? Quem é
o Che que reprime a liberdade? Nada disso tem nexo. E por
isso sinto sempre aquele gosto amargo de derrota e um frio
na espinha quando se trata das Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia. Aliás, quase sempre.
Não esqueci, mas substituí aquela imagem sombria
de você no cativeiro. No mesmo telejornal, agora vejo
você, Ingrid, descer sorridente do avião. Vi
sua mãe, seus filhos. Ouvi você dizer que um
pedacinho de sabonete era luxo. Vi uma Colômbia eufórica,
uma França feliz. Vi você recuperar o brio,
a energia, a vontade. Vi o castelo das FARC começar
a ruir. Apesar disso, entendi seu recado: tem muita luta
pela frente. Tomara que seja o começo do fim.
Desejo que você
receba um abraço apertado da sua mãe, o carinho
dos seus filhos e amigos. Que você veja rostos e lugares
saudosos, sinta cheiros familiares. Que tenha sabonete,
xampu, hidratante, banho quente, escova de dente, colchão,
travesseiro. Que vá ao salão de beleza, ao
museu, ao cinema, ao senado. Desejo que você possa
dirigir seu carro, passear em uma manhã de domingo.
Desejo que coma o que mais gosta, que leia o que tiver vontade,
que ouça música, dance, cante. Desejo, mais
que tudo, que você coloque suas idéias em prática.
Talvez eu devesse
ter lhe falado mais sobre o que penso das FARC, dos outros
reféns, da política, sobre o governo do Uribe
e a sensacional estratégia de resgate. Mas sei que
a mídia vai explorar esse assunto à exaustão.
Antes que isso aconteça, porém, achei importante
lhe desejar sua vida de volta.
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11/06/08 - Paciência no limite ( estréia)
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Lídia Lavras:
investigativa como sempre e opinativa como nunca, essa menina
sabe desde criança que os sapos não foram
feitos para serem engolidos. Escreve aqui quinta sim, quinta
não. Fale com ela: lidialavras@yahoo.com.br
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