
08/02/08
A fantástica e inóspita razão
de Aturdido da Palavra
Toda conversa
carrega em si um caráter de conversão. Foi
assim que Aturdido da Palavra descobriu sua vocação
para escutador. Cobrava, mirradamente, para ceder seus aceirados
ouvidos a um qualquer. Como não discorria, apenas
orelhava seus monolocutores, desenvolveu uma fantástica
e peculiar característica ao decorrer dos anos. Aturdido
costurava na cabeça as estórias que ouvia
e, assim, as vivia em pensamento. Singularmente, deixava
de viver as suas e vivia as dos outros em sua cachola.
Certa vez, já sabedor
de suas especialidades, veio a seu encontro um senhor alvo,
de olhos cerrados, barba de terceiro dia e palavrear não
estranho. Era sua personalidade, carnificada, materializada,
em pessoa pleonasticamente. Coeso de Nascimento (pseudônimo
de Aturdido) vinha cobrar de seu descuidado as estórias
que não mais vivia, mas apenas escutava. Silenciosamente
atencioso, o rapaz meneava a cabeça ao concordar
com sua figura dramática e apenas baixava os olhos
quando do contrário.
De início, ainda sem
entender bem o que acontecia, Aturdido fez jus a seu nome.
Posteriormente, acreditava ser esquizofrenia. Finalmente,
mais aceitou que descobriu que era mesmo sua personalidade
num lampejo de esquecimento. Ela, curvada pelas estórias
de outros, começava miudamente a desaparecer
posto que personalidade sem estória é como
pássaro sem asas, pedra sem chão, árvore
sem terra, no popular, pão sem manteiga. Coeso sempre
orientava seu cavalo para tomar cuidado.
- Aturdido, Aturdido, dia
desses você vira ex-Aturdido.
Passaram-se anos e nada de
estoriar por aí. Era sempre aquele tecer pelo ouvido
os dizeres dos outros. Rendava seus pensamentos com calor
de jágora!. Construía uma única história
com diversos retalhos de imagens-cuca. No entanto, iniciou-se
um acontecimento inusitado. A cada lance de invenção,
inaugurava-se um pequeno buraco em seu corpo que vazava
para o outro lado, como se quem visse enxergasse uma pessoa
desaparecendo. De pronto, não deu muita importância.
Quase não usava seu miúdo esquerdo do pé
mesmo. Nem a ponta de seu nariz, que começava a se
borrar feito esfumato pelo rosto. E o caso ainda havia de
acumular-se. Como o cérebro enviava a informação
para o músculo e este, sendo interrompido no caminho,
não a completando, causava em seu corpo um intenso
não-se-saber-se de movimentos descompassados. Era
como se a cada tentativa de estender a mão produzisse
uma dança estranha, curiosa, que reverberava por
todo seu corpo, causando uma impressão jocosa em
quem o assistisse.
No entanto, apesar do fato,
Aturdido não estancava sua inércia. Continuava
a não cursar sua individualidade. Estendiam-se suas
não-estórias. Já velho, foi penosamente
vítima do olvido, malefício corriqueiro às
rugas. Assim, suas rendas começaram a se esfarinhar
pela cabeça, cada canto do oco se escurecia apagando
uma a uma as candeias de sua imaginação. Todo
romance guardado em seu coco era subvertido, reestruturado,
finalizado e, por fim, esquecido. E a cada rodada destas,
agravadamente, Aturdido ia, miopimente, embaçando-se
em direção ao nada. Verdugo, o tempo calhou
de tomar seus dias, consumindo-o como um buraco-negro, degenerando-o
como uma estrela. Escafedendo-o por completo.
Anos correram, pessoas, novas
casas se erguiam a cada ruína, velhos, cachorros,
crianças com mania de super-homem, cadeiras de balanço,
silêncios noturnos, brigas, incoerências, invenções,
imaginações e, ao final, todos sabiam da história
do homem que desapareceu, tornando esta, a fábula
de Aturdido da Palavra.
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2007

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Leonardo Rocha
é jornalista, ator e cineasta. Fale com ele: E-mail:
nadorocha@yahoo.com.b
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