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24/03/07 - Sábado
Ensaio a uma pessoa
Incitado por um poema de Paulo Leminski
Não sei palavras que conduzam a uma explicação. Não sei, por menor que seja, tornar claro algo que sinto de forma tão pungente. De nada me valem os livros, os filmes, as músicas, o teatro, a minha insegurança pueril, a minha certeza prática, os meus olhos, boca, ouvidos, tato, sentidos, a forma perspicaz de apenas observar, a minha eterna curiosidade, os meus risos e choros, minhas conversas e brigas, meu entusiasmo jovial, minha prepotente intelectualidade, meus cordões, meus perfumes, minhas elucidações, minhas dúvidas, de nada vale o tamanho de minhas roupas, a cor de meus sapatos, o calibre de minha gripe, a fôrma de aço do peito, as veias expressas, o cheiro da Dama da Noite, a faca que corta o bolo anual de aniversários, as unhas sujas, os vômitos de álcool, as tristezas, os acessos de liberdade, o falso conhecimento, minhas crenças, minhas descrenças, meus hábitos, minha eloqüência, minha arruinação, minha consternação, minha obscura maturidade, os acertos, minha arrogância de não saber me colocar, minha estupidez, minha rara capacidade de obrar infortúnios, o corte de cabelo, minha absorção dos males, meu expurgo desses males, minha ruminação cotidiana, meu assombro, minha contemplação, meus passos, meus beijos, meus quase-beijos, meu delicado mistério, minha enorme vontade de estremecer a Lua com um grito, minha vontade de tocá-la, meu desejo paternal, meu cuidado, minha dúzia de eus, minha arcada dentária, meus cheiros, minha distração, minha virilidade, meus tantos sorrisos e outros mais carrancudos, meu mau-humor, minhas espinhas, minhas costelas, os abraços contidos, meus documentos, minha inconstância febril, minhas cutículas, meus estalos de dedos, meus pés acelerados, meus olhos avermelhados, meus medos, minha sempre inconteste dor no peito, meu arrependimento, minha desilusão, minha ilusão, minhas praças, minhas conversas, meus bares, minhas viagens, minhas guerras, meus ensinamentos, meu lógico olvido, minha estação preferida, meus enquadramentos, a utilidade de meu quarto, a reserva de forças, as escolhas, meus instantes sozinho, momentaneamente confortável, minha salubridade, minha divagação, meus deslumbramentos, meus chás, meus cafés, meus cigarros, minha vontade de explodir, minha etérea cabeça, meus diáfanos, meus soslaios, meus zíngaros, meus destartes, meus faustos, minhas homenagens, meus méritos, minhas bestas mas poucas formalidades, meus desusos, meus horrores, meus acasos, minha dúvida sobre o amor, minhas recompensas, minhas agruras, meus ídolos, minha consciência, meus instantes de inconsciência, minha tola reflexão, minha razão, minha interpretação, minhas cenas, minhas músicas, meus filmes, meus contos, minha opinião.
As lembranças, as saudades, minha lira de sonhos, de nada vale tudo isso quando não há palavra, frase, dúvida que me socorra a entender o absoluto que é a ignorância de não se saber.

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Leonardo Rocha é jornalista, ator e cineasta. Escreve todas
os sábados.
E-mail: nadorocha@yahoo.com.br |
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