OPPERAA
 
Baby Boom
     
 
 
     

Um corpo torto, aos pedaços, rasgado como uma folha pode ser um problema, mas não uma fossa de perdões, indulgências, insignificâncias. Não sou um vaso podre que num simples toque pode estilhaçar-se em pedaços de pena, amparos. Ainda estou vivo meu irmão!

Tela: A Lua, de Tarsila do Amaral (1928)
óleo/tela 110 X 110cm (reprodução)

 

21/08/07
Aamo abaçaí (ou a Lua que espreita)

1
Resolveu retumbar-se. Explodir em ter-se para si mesmo. A vontade, quase inesgotável, de tomar uma atitude o fez tomar esta.

2
(Sozinho)

Paulo: Pensava que encontraria fora de casa o que não tinha dentro. Pensava que na busca externa, debruçado em minhas certezas de antes de partir, fosse-me revelado o real valor do tempo. Sem perceber, pelo contrário, que o que se transpassava por minhas escuras pupilas era apenas os olhos do pai. Olhava-me como quem vigia a cria, na obscura incerteza de perdê-la se não cuidar. E isso me punha cru, inerte aos meus sonhos. Quando saí de casa, fugido de toda angústia que me causava ouvir seus ditos, receitas e conselhos, via também os olhares omissos do resto da família. Era um sem tanto de olhares perdidos, envoltos em luz despertando.

3
Fernando: Acorde meu irmão, a hora já acendeu.

4
Fernando: Não cerrei as pestanas. Recordei enquanto você dormia o que havíamos conversado ontem à noite.

Paulo: Não pense. A conversa já secou.

Fernando: Faz três anos que saímos de casa e ontem foi a primeira vez que recordamos as palavras que sempre quisemos trocar.

Paulo: Não sei do que fala.

Fernando: Todo esse tempo só serviu para nos afastar ainda mais, meu irmão.

Paulo: Ora Fernando, já não basta os solavancos que me causou ao lembrar os discursos do pai? Não vê que esse assunto está terminado?

Fernando: O mundo vinha num inesperado mover-se, não me culpe pelo que aconteceu.

Paulo: O mundo que você fala não é para nós, somos filhos desgarrados, bastardos de nossa terra. Por isso, não me canse com suas palavras, sonhos, deixe-me dormir.

Fernando: Não é disso que falo. Nossa casa não era um antro religioso. Se tivéssemos mais tempo para tentar explicar...

Paulo: Minha vontade agora era de varar os teus dogmas, teus santos. Era cuspir no rosto do teu Deus tudo que ele me fez.

Fernando: Isso não é destino, Paulo. Não há nada predisposto, antecipado. Nosso tempo é nulo. O que nos sorveu não foi o destino, meu irmão, esse deus de asas cortadas que só nos dá um chão seco, duro, uma alameda de vozes em que a certeza é seu maior canto. O que nos trouxe aqui, Paulo, foi o acaso.

Paulo: O acaso? Não foi o acaso que, precipitadamente, arrancou um pedaço de meu corpo!

Fernando: Não recuso nada, mas também não aceito nada. Você bem sabe disso. Faço aquilo que quero não me importam as suas podas com olhos que só vislumbram o previsível, o possível. A sua peculiaridade física só nos causou problemas.

Paulo: Um corpo torto, aos pedaços, rasgado como uma folha pode ser um problema, mas não uma fossa de perdões, indulgências, insignificâncias. Não sou um vaso podre que num simples toque pode estilhaçar-se em pedaços de pena, amparos. Ainda estou vivo meu irmão!

Fernando: Essa sua insurreição só lhe causa mais problemas.

Paulo: Como poderia viver em meio àquela família sendo observado como um bicho, uma aberração! Foi pelos olhos, de dentro daqueles raios-verdes do pai, que sentia a desaprovação de todos. Era como se o membro que me faltava fosse para eles o bastante para me tornar um inculto, um baldado, um filho partido!

Fernando: Não é necessário construir um castelo de afirmações para mim. Eu estava lá. Com uma tranqüilidade que ameaçava os meus desejos, meus sonhos, mas estava lá.

Paulo: Estava... no começo como quem observa, erradio, de longe, uma iniqüidade, mas que não tem a coragem de se levantar e gritar sua desaprovação diante daquilo tudo que vê. Por isso, hoje vim saudar a despedida, meu irmão, roer a borda do seu acaso.

Fernando: Não me fale dessas coisas. Você tem conhecimento que era como se tivesse em uma das mãos, o sonho, as lembranças. Na outra, a dor da despedida. E entre as duas, o tempo.

Paulo: Não me vazam por esse cancro as mesmas dúvidas. O que me resta são retalhos, tiras daquilo que buscava, mas que hoje já costurei com as agulhas da tradição. Como poderia uma família como a nossa ter um filho enfermo, acidentado, o que pensariam nossas irmãs, vendo um homem incompleto trançar pela casa? Como poderia a mãe sentir aquele pedaço de carne que me falta todos os dias? Sim, porque ela sentia! Escorria pelos olhos aquela água de pena, dó. E o pai? Carregaria aquela cruz pelo resto de sua bruta e tradicional vida campestre.

Fernando: Sim, mas foram os mesmos olhos do pai que atinaram para o seu dilúvio, Paulo, sua atrofia, seu rasgo de consciência.
Paulo: Meu caco foi este. Minha desmesura foi esta. Não quero discutir os motivos, essa razão que tanto fala arde-me mais que esse sol a pino que nos encolhe agora debaixo dessa árvore. Deixe-me descansar, vamos dormir.

Acuba

5

(ao amanhecer)

Paulo: Fernando, acorde. Observe. Quem são aquelas pessoas ao longe?

Fernando: Onde?
Paulo: Lá, debaixo daquela oliveira.

Fernando: Não sei, não consigo ver com clareza.

Paulo: Não acredito.

Fernando: Em quê?

Paulo: Não percebe?

Fernando: Você me irrita Paulo, diga logo.

Paulo: Nunca pensei que pudesse vivenciar isto.

Fernando: Diga de uma mais vez o que...

Paulo: Somos nós!

Fernando: Como?

Paulo: Veja, somos nós debaixo da árvore.

Fernando: Não seja louco, isso é impossível.

Paulo: Então mire meu irmão, aproxime-se mais um pouco.

Fernando: Curioso... Parecem-se mesmo conosco.

Paulo: Não se parecem Fernando. São. Olhe, estão embaixo de uma oliveira, assim como esta.

Fernando: É verdade. A copa é bem parecida, assim como o gramado em volta.

Paulo: E as pedras, a fogueira que fizemos à noite, os frutos... Fernando!
Fernando: O que foi?

Paulo: As oliveiras, as pedras, a fogueira, não se parecem com as daqui, elas são as daqui, são as mesmas!

Fernando: Agora você é que me parece ridículo.

Paulo: Não, compare. A altura da copa, a colocação das pedras, o lugar onde a fogueira foi feita e onde nos deitamos à noite. É tudo idêntico.

Fernando: Começo a duvidar de sua sanidade. Eles apenas se assemelham a nós, vestem roupas parecidas e têm alturas equivalentes às nossas, assim...

Paulo: Venha até aqui.

Fernando: Ora Paulo, não seja estúpido, o que você vê são somente...

Paulo: O que foi?

Fernando: O homem curvo, de cabelos grisalhos e andar manco acendeu duas fogueiras. Mas ainda é dia.

Paulo: Exatamente como você o fez a noite passada. Além disso, suas características físicas são idênticas às suas. Estranho, aquela penumbra causada pela árvore não é sombra. Parece-me... É noite! Fernando, embaixo da árvore é noite.

Fernando: Quem é o outro que está com ele? Não acredito. É mesmo você, meu irmão!

Paulo: Vamos, quero ver o que se passa.

(saem em direção aos dois homens)

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Leonardo Rocha é jornalista, ator e cineasta. Fale com ele: E-mail: nadorocha@yahoo.com.b




 
 
 

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