
23/09/08
Romance
de Mictório
Sobre o losango amarelo
ouro repousa tranqüila a cabeça de um príncipe
de maxilar proeminente, sorriso modesto e madeixas escorridas,
apenas flanando olhar no fluxo contínuo dos transeuntes
aflitos que se recolhem em interlocuções [protegidos
pela privacidade única que se configura por dentro
das portinholas] para o desfazer de suas necessidades elementares,
um banho no rosto cansado, uma passagem pela dialética
dos olhos.
Num quadrado branco, atarracada e macia, por entre os estilhaços
e o desbotamento do tempo, dança solene uma bailarina
de vestes transparentes, suave no caminhar de sapatilhas
celestes. Transita por espaços minúsculos
lançando-se para os lados no “gingolear”
de um só braço demarcado friamente - confirma
na supressão do outro a intencionalidade em fazê-la
mesmo lindamente deficiente. Ou enlevaria para si toda a
graça e pureza do mundo, num sensível paradoxo
da existência que não caberia àqueles
azulejos: o desarranjo de deitá-la ali, ou em qualquer
outro lugar, senão em redoma envidrada?
Ao final das datas, permanece imóvel o nobre apenas
no desviar dos olhos, esgueirando-se para não flagrar
constrangimentos até encontrá-la afoita sorrindo
numa tarde despretensiosa de verão. Tímido,
e pudico, sucumbe à liberdade encantadora e abandona
o infortúnio de assistir por intermináveis
horas o ciclo repetitivo e tedioso dos homens: elevando
olhar, abranda gesto servil e ensaia à dama aceno
singelo, ao qual ela lhe retribui com balé inefável
borboleteando-se pelos quadrados, para o seu deleite. Na
esfera onde convivem harmoniosamente os desejos e os sonhos,
unidos pela imagem volúvel que se esvanece no reflexo
[intermitente pelo abre-fecha das entradas-saídas],
segredam amores impossíveis através das frestas
por dias, madrugadas e tardes inteiras.
Quando o lusco-fusco se faz prenúncio da noite, adentra
– cheirando ao terrível aroma urbano da vida
que corre – um rapaz carregando consigo borrões.
Pelas paredes estende as mãos a desenhar símbolos
e formas, a caprichar em frases, a aprimorar idéias
apropriando-se de traços alheios. Correm frases enegrecidas
que marcam os caminhos, até criar no acaso a ponte
possível entre os dois amantes solitários.
Ali, à vertical, o até então modesto
sorriso se transforma em gargalhada copiosa, aguardando
que venha pra perto sua dançarina.
Cadenciando flutuante um velejo sob ãs, erres, enes,
a bailarina escorre pelo contorno das letras. Ao ultrapassar
a última, vira o rosto com aceno envergonhado - e
abandona seu amante e os azulejos amarelo-gema de vez. Estatelado,
macambúzio, se queda o príncipe de maxilar
proeminente e madeixas escorridas.
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Isaac Pipano é
estudante de jornalismo da Unesp. Candidato a jornalista
e escritor, misto de músico frustrado e crítico
de brincadeira, dono de gargalhada constante e inflamada,
sãopaulino só em dias de título e não
assina seus próprios perfis. Fale com ele:
isaacpipano@faac.unesp.b
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