
24/07/08
La misma
y la otra
La Mujer sin Cabeza, terceiro longa da argentina
Lucrecia Martel, apresenta uma cineasta em processo de transformação
A 6ª Festa Literária
Internacional de Paraty, também conhecida como FLIP,
manteve seu foco nas mais diversas manifestações
literárias presentes em outras artes e ciências,
como o cinema, os quadrinhos ou a psicanálise. Dessa
necessidade de interpretação dos mecanismos
de composição da literatura, e sua expressão
em outras formas que não os livros, surgiu também
o interesse em debater o quanto todas as artes se interferem
simultaneamente. Porém, não houve dúvida
a qualquer um dos autores ao concordar que o cinema tem
sido, como fenômeno de massa, a mais expressiva delas.
No sábado, dia 5, a argentina Lucrecia Martel promoveu
uma sessão única e exclusiva (até aquele
dia, e provavelmente até agora, pois o filme havia
sido exibido apenas em Cannes) de seu último longa-metragem,
La Mujer sin Cabeza, provando o porquê de
ela ter sido convidada para representar o cinema numa feira
literária. Cento e sessenta lugares foram disputados
pelos participantes, o que gerou uma série de conflitos
com a organização do evento e obrigou Lucrecia
a exibi-lo novamente no dia seguinte.
La misma
Seu primeiro longa-metragem, O Pântano, foi
aclamado em festivais na Argentina, Havana e Berlim. Propondo
uma estética abafada e desconfortante, o filme inaugura
a temática de Lucrecia que se volta para a classe
média argentina decadente. A desconstrução
familiar, o toque reprimido, a ausência de trilha
e o anacronismo compõem o alicerce narrativo permitindo
o enlaçamento aparentemente sem propósito
dos fatos em uma trama fria, vazia, incomunicável,
repleta de elementos e de uma sensação de
iminência, de algo que está sempre por vir.
Para Lucrecia, qualquer análise meramente simbológica
de seus filmes exclui um sem número de possibilidades
e leituras; os símbolos são facilmente decodificáveis
e permitem ao espectador acessar rapidamente o conteúdo.
Contudo, eles generalizam situações, criam
paradigmas e tornam-se maneirismos e cacoetes de linguagem;
enquanto uma estrutura por camadas – a qual a própria
diretora defende –, relaciona elementos secundários
ao primeiro plano, atribuindo relevância para alguns
signos supostamente deslocados e pouco interessantes.
Essa opção estética é reutilizada
em A Menina Santa, 2004, acusado imediatamente de reciclar
a fórmula sem, no entanto, atingir o mesmo êxito.
Ainda assim, A Menina Santa possui uma grandiosidade narrativa
tão intensa – talvez mais - quanto a de O Pântano.
O reaproveitamento de elementos permite que se trabalhe
comparativamente os dois filmes para, enfim, encontrar grande
parte da estética e dos esquemas propostos por Lucrecia:
não centralização em um único
personagem, religiosidade, piscinas (repugnadas por ela),
espaços fragmentados, valorização das
figuras femininas e um desfecho no clímax a partir
de uma cena reveladora que, ao mesmo tempo, não se
encerra.
La outra
De calça jeans, óculos e blusa preta,
meio tímida, meio sem jeito, Lucrecia Martel abre
a sessão de La Mujer sin Cabeza falando em espanhol,
pede desculpas pelas legendas estarem em inglês e
nos diz que não voltará ao final do filme
para debatê-lo, mas que isso aconteceria no dia seguinte
em uma rua qualquer de Paraty.
Nos primeiros quinze minutos, muito da antiga Lucrecia já
não está ali. A começar pelo plano
médio no carro, que fixa a câmera em Verónica,
enquanto ela dirige por uma estrada de terra. Então
se vê, de dentro do carro, uma batida, um choque que
deslocará Verônica para além do simples
impacto, da causa e da conseqüência; transporta-a
para um outro estado de consciência, inerte, transtornante.
Verónica não consegue identificar aquilo que
atropelou e por mais que Lucrecia nos permita que vejamos,
honestamente, passamos a duvidar. Pode ser um cachorro,
um rapaz ou qualquer outra coisa. A continuidade mostrará
que isso tampouco importa.
Numa atmosfera semelhante ao insólito de David Lynch,
onde nunca se sabe quais os limites do real, Verónica
passa a viver num estado de semi-consciência, como
se estivesse constantemente naquela sensação
pós-trauma, naqueles segundos em que não se
há reação, entre o delírio e
a lucidez.
Lucrecia apresenta seu universo desconstruído na
profusão de novos elementos: a presença constante
de Verónica em todos os planos, abandonando a pluralização
de personagens; a recorrência de planos fixos dentro
do automóvel, em detrimento dos espaços físicos
utilizados anteriormente; a inserção de personagens
duais, híbridos entre a lucidez e o real, sintetizando
o universo de Verónica, mas suscitando dúvidas
quanto a existência e, finalmente, o inconsciente
apresentado de maneira muito mais profunda e complexa.
Na utilização de uma fotografia simples -
ao manter em diversas cenas o segundo plano desfocado, intensificando
a presença das personagens no primeiro plano, elevando,
assim, a sensibilidade e o torpor – e na atuação
singular de Maria Onetto, Lucrecia reconsidera a decadência
da classe média argentina a partir das desorientações
de Verónica, de sua relação conjugal
fracassada, da indiferença com a filha e na aparente
fuga para a o prazer através do amante.
La Mujer sin Cabeza confirma o amadurecimento de Lucrecia
Martel ao sorver o melhor de suas narrativas anteriores,
eliminando os recursos desgastados, inserindo novas estruturas,
transitando por espaços que deixam a escala social
e atingem o inconsciente e, ainda assim, reutilizando características
– como as piscinas, a ausência de trilha sonora
– que tornaram seu cinema tão característico
e peculiar.
Como em romances modernos, a personagem parece viver em
fluxo de consciência nos acontecimentos aparentemente
imaginários e isso faz de Lucrecia uma representante
desse cinema que está tão arraigado às
estruturas literárias. Embora ela afirme que o realismo
fantástico latino-americano a tenha influenciado
menos que os westerns, é inegável que as narrativas
fantásticas do norte da Argentina, como Horacio Quiroga,
estejam presentes em sua obra; os elementos fantásticos
dessas narrativas são dispostos de forma a parecerem
fatos cotidianos. Em seus filmes, Lucrecia domina essa técnica
ao transformar o absurdo de maneira que não assombre
ou duvide, ainda que perturbe.
As críticas iniciais ao filme de Lucrecia, vaiado
no festival de Cannes, giraram todas em torno da premissa
“não chega a lugar algum”. Como se, de
alguma forma, o cinema tivesse que chegar a qualquer lugar.
La Mujer sin Cabeza está mais interessado em examinar
os espaços recônditos da mente humana e as
fragilidades sociais do que se encerrar em simbologias.
O contrário: Lucrecia sugere sempre algo que está
prestes a acontecer... e nunca acontece.
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Isaac Pipano é
estudante de jornalismo da Unesp. Candidato a jornalista
e escritor, misto de músico frustrado e crítico
de brincadeira, dono de gargalhada constante e inflamada,
sãopaulino só em dias de título e não
assina seus próprios perfis. Fale com ele:
isaacpipano@faac.unesp.b
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