
16/05/08
A
film by em Cannes
O vanity credit - ou
a expressão a film by, o crédito
de vaidade - sempre soou pretensioso para aquele cinema
que não fosse estritamente autoral. Em blockbusters
e produções megalômanas, a expressão,
que deduz o todo da obra como produto do diretor, não
apresenta o mesmo significado, pois em filmes esquematizados
segundo a industrialização hollywoodiana cabe
ao diretor apenas parte do conjunto da obra. Em algumas
das grandes produções do verão norte-americano,
o diretor se faz ainda menos importante do que o produtor
executivo, que financia e gere os gastos e possibilita os
recursos, ou o diretor de fotografia, os editores e os técnicos
em efeitos especiais. A validade do vanity credit
entra em discussão, e categorias da indústria
cinematográfica passam a reivindicar seus diretos
sobre a obra, como aconteceu ano passado com os roteiristas.
Segundo o crítico
francês André Bazin, o primeiro a propor a
terminologia cinema de autor, a história do cinema
não se dividiria mais entre o pós e anterior
da era sonora. O cinema, portanto, passaria a ser dividido
entre o comercial e o de autor, pois não haveria
limitações – sejam elas quais forem
no âmbito da técnica – que pudessem engessar
os filmes dentro de determinado período. A dimensão
temporal é ultrapassada e a permanência se
engendra em contraponto da precisão temporal que
prende a obra no tempo/espaço.
Tal perspectiva, baseada
na engenhosidade de diretores responsáveis por iniciar
não só a produção do pensamento
cinematográfico, mas a subversão dos esquemas
clássicos através da apropriação
das estruturas narrativas modernas, dá ao cineasta
a categorização que conceitua os demais artistas
das grandes artes. Como disse Glauber Rocha, “o advento
do ‘autor’, como substantivo do ser criador
de filmes, inaugura um novo artista em nosso tempo”.
Mas essa reorganização do autor como artesão
transfere aos filmes a mesma arrogância de um quadro
renascentista, o mesmo distanciamento com um público
que não detém o repertório necessário
para a apreensão total.
Sob essa perspectiva,
o cinema é o autor e sua política, a ética
descrita na tela é própria de sua condição
e o filme é um processo revolucionário alinhado
ao desenvolvimento social. Porém, o autoritarismo
tacanho no modo como Glauber conceitualiza o autor, exclui
os mecanismos de produção, a necessidade de
comercialização e leva o cinema revolucionário
ao ostracismo numa sociedade em que o desvelo pelos produtos
midiáticos assume o ápice, e os espectadores
assistem pasmados aos avanços da técnica.
A 61ª
edição do Festival de Cannes
com abertura do longa-metragem de Fernando Meirelles, Blindness,
baseado na obra do literato português José
Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira, foi escolhida
pelo diretor artístico do festival, Thierry Frémaux,
em cima da hora - já que, normalmente, o filme que
promove a abertura do festival não entra na competição
oficial pela Palma de Ouro. Ao todo são 22 longas-metragens
que em comum tem a temática do homem contemporâneo
desalojado na sociedade ou os efeitos individuais das guerras.
Em sua maioria, os filmes tratam de temas contemporâneos,
como a ocidentalização da China em Jia Zhang-ke
ou mesmo o cotidiano na favela “sem tiros” de
Walter Salles.
Maior do que a afinidade
temática, os filmes trazem consigo a discussão
sobre o cinema de autor, mote principal do Festival de Cannes
este ano, presidido pelo norte-americano Sean Penn. As obras
carregam consigo a impressão dos seus idealizadores,
a persistência estética, a recorrência
dos conteúdos e a precisão ideológica,
ainda que suprapartidária, num contexto em que os
movimentos sociais ideológicos têm tão
pouco crédito. Talvez por isso a insistência
em assumir protagonistas isolados, individuais e as relações
que esses seres estabelecem consigo e com a realidade acerca.
Dos 22 filmes em disputa,
ao menos oito são co-produções internacionais
em parceria com dois ou três países, com investimentos
de um quarto, com elenco de cinco ou seis e com um público
global. Essa amostra da nova perspectiva cinematográfica
de alcance mundial parece ir de encontro ao proposto pelo
cinema autoral, da consagração do diretor
como criador e da pregação política
pregada em outras décadas. Contudo, a autoria é
reafirmada na construção narrativa, no domínio
da estética, na sedimentação de valores
e na substancialidade dos filmes. O caráter visionário
das produções e de diretores que partem de
identidades próximas com sua realidade e inserem-se
numa geração de cinemas que dialogam com o
mundo cotidiano em que estão inseridos e, ao mesmo
tempo, assumem para além-cinema o conteúdo
narrativo.
A nacionalidade
e o retrato histórico, a defesa de valores nacionalistas,
senão patrióticos em alguns casos, não
se permitem para conclamação de revoltas sociais,
mas pela compreensão de que, nos novos tempos, no
ritmo acelerado da sociedade de informação,
o cineasta não é mais um autor que transforma
sua obra num produto inacessível nas prateleiras,
mas um realizador que alcança um público multilíngüe
partindo de si mesmo.
Leia
também
07/04/08
- Entre
o sangue e os fracos
11/03/08
- Um cineasta que não gostava de Cinema Krystof Kieslowski
22/02/08
- Brasil fica de fora do Oscar 2008, e de 2007, 2206, 2005...
_______-_______________________________________
Isaac Pipano é
estudante de jornalismo da Unesp. Candidato a jornalista
e escritor, misto de músico frustrado e crítico
de brincadeira, dono de gargalhada constante e inflamada,
sãopaulino só em dias de título e não
assina seus próprios perfis. Fale com ele:
isaacpipano@faac.unesp.b
|