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Baby Boom
     
 
 
     

Pode parecer um pouco estranho, mas arte já não é como foi criada: deleite estético para os sentidos. Deixou de ser isso faz algum tempo, nós é que perdemos o bonde da história.

Marcel Duchamp - Fonte (1917)

 

25/08/07
O PARADOXO DO READY-MADE
OU CÁ COM OS MEUS BOTÕES ADORNADOS DE CRÍTICAS

“Toda arte é, como a morte, uma inércia do instante e, portanto, uma modificação na velocidade do tempo vivido” (Paul Virilio, Guerra e cinema).

Abro com uma epígrafe-generalização de Paul Virilio para, depois, já ir me precipitando: também sou simpatizante de alguma arte contemporânea. Assim, bem de repente mesmo, para me salvar de qualquer revelia ou contraponto, como uma pequena chuva que cairia entre dezembro e março e logo mudaria segundo a direção de um vento novo, mais cheio de facilidades e de mobilidade. Acompanho, também, a tendência - um pouco a reboque e no rastro dos novos textos binoculares – à autofigurativização de minha autoria e a implementação de uma primeira pessoa já na cabeça deste escrito. Antes que a delonga faça jus ao nome, vamos à questão estritamente pessoal (ou não).

O problema é que há alguns dias voltei a me intrigar com o fato de que tudo pode vir a ser arte. Não é nada muito novo, mas oras... Assim, nada acaba sendo arte. Ou acaba?

Segundo os “novos apreciadores de arte”, acaba. A visão comum a eles é que, sem as balizas técnicas impostas pelos gêneros artísticos separados, existiria mais democracia no fazer e no apreciar artístico; na fruição (Análise? Questionamento? Experiência?) de um objeto-questão, de disjunções semânticas, ready-mades e instalações, já não haveria uma aproximação pelo belo: o novo e “conjuntivo” objeto de arte seria atrativo a partir de uma explicação intelectiva.

Man Ray - Rayografia (1927)
Pode parecer um pouco estranho, mas arte já não é como foi criada: deleite estético para os sentidos. Deixou de ser isso faz algum tempo, nós é que perdemos o bonde da história. O radicalismo das experimentações de quem a faz no nosso tempo não é mais com o intuito de trazer regozijo, mas de questionar, trazer ao pensamento um fluxo de combinações novas e incrustar no juízo alguma revelação antiparadigmática. Tudo pode vir a ser arte mesmo, se seguir à risca algum sistema de arte regido pelo dinheiro.

Ora, um dos problemas disso tudo é a totalização, que se de tudo pudéssemos tirar arte, incluiríamos também no pacote a estética. Coisa que não acontece quase de modo algum nos novos barulhos e máquinas non sense do nosso tempo. E ainda pior: com esse modelo de legitimação, acabamos cindindo com um abismo a sociedade da qual a arte deve prescindir, entre os “herméticos” e os “ingênuos”, dois pólos burros que têm intrinsecamente lógicas muito perigosas a propor.

Marcel Duchamp - Roda de bicicleta (1913).
Outra questão advém da desvalorização dos especialistas (e sua técnica) enquanto artistas verdadeiros do nosso tempo. Será que qualquer indivíduo sem conhecimento do material no qual está impondo seu discurso pode trazer algo realmente mais importante acerca daquilo que ele quer questionar? Ou seja, se a arte nova independe das divisões antigas do classicismo, se o artista não necessita mais de um material específico para a sua atuação, se músicos, pintores, literatos (etc.) não são mais artistas do que, antes, poderiam ser nada dentro do quadro social (ou artístico), como resolver o problema (ou a solução?) de estarem os novos artistas em completude aquém das possibilidades expressivas do seu material bruto? Enfim, como conseguir a eficácia expressiva máxima de um objeto artístico que acaba sendo feito por alguém que entende menos, por exemplo, de um ferro de passar roupas do que a própria passadeira de roupas (ou do seu criador)?

Com isso, cria-se uma inversão nos valores do produto final. Não que tenhamos mesmo que advir de uma medida máxima da expressão (se é que isso existe), mas é, com efeito, brindar a ignorância com a publicização do objeto ingênuo, mas ao mesmo tempo hermético, da coisa sem sentido e ao mesmo tempo simplória.

Para completar, no que toca a fuga das características belas, uma nova pergunta: a arte-questão não se distancia dos que não se interessam pelo seu questionamento, ou pior, nunca vão se aproximar ou apreender nada dele? Tudo bem, tudo bem; a arte nunca foi feita para que todos apreciassem, só os preparados para entendê-la em profundidade, me responderiam os entusiastas da arte contemporânea. Mas é inevitável dizer que a beleza atraía algo de compreensível a qualquer obra do “modelo antigo de arte”, e que o binômio intelecção-beleza exclui menos do que o questionamento (em qualquer nível) puro.

No sentido horário - Item dobrável de viajante (1916),
Fonte (1917) e Roda de bicicleta (1913)
Marcel Duchamp (Crédito da foto - TIANA CHINELLI)


Depois de tantos parágrafos, tenho que me repetir para me salvar: sou, também eu, um entusiasta das novas propostas. Mas, de qualquer modo, é aí que está o problema avant la lettre: a admissão da nova arte só é possível com a aceitação da morte da arte como ela era, e disso a nossa proposição estaria incorreta: tudo pode vir a ser arte, exceto o que já foi constituído como tal. E isso inclui um rechaço para com os artesãos antigos - com todo seu conhecimento adquirido a respeito da harmonia e desarmonia dos elementos dos materiais do mundo - e a exclusão da maior parte dos que poderiam ser transformados a partir das questões levantadas. A opção fica mesmo no suicídio e no mandar a conta artística lá do limbo.

Se Hegel entreviu, nos seus famosos Cursos de estética, a morte da arte como a filosofia e as áreas de conhecimento queriam que ela fosse, isto é, propriedade do sensível, é melhor que a matemos mesmo de uma vez. Assim, talvez possamos mudar o nome e a existência desse negócio tão falado e pouco sabido, ao qual damos o nome de arte. Uma sugestão, enfim: que tal seria se a arte virasse um ramo da filosofia (estética não!) no qual pudéssemos questionar os objetos, fenômenos e ações à luz de qualquer que fosse nossa vontade? Alguém poderia até dizer que Schopenhauer previra o conceito, lá no seu O Mundo como vontade e representação. E aí teríamos uma discussão epistemológica mais fértil, com uma arte só próxima de onde ela ultrapassa seu conceito básico de delírio genial intuitivo para admitir campos de atuação menos comprometidos, como o raciocínio puro.

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Ícaro Moreno Ramos é jornalista, músico e fotógrafo. Pós-graduando em História da Cultura e da Arte pela UFMG, aprecia composições alucinadas, artistas sagazes e poesia. Tímido, porém astuto, esse devorador de livros é adepto das mais diversas filosofias, porque Metafísica, Estética, Lógica e boteco têm sempre o seu lugar. Escreve todas as sextas-feiras na coluna Retalhos Culturais.



   
 

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