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Morta, como sugeriu o próprio Chico Buarque, a existência prolífica da canção ainda ensaia um caminho de verdadeira estética renovadora. Algumas das respostas parecem tentar correr o fio da lâmina que separa (va) a cultura em maniqueísmos antigos, em tentativas polarizadas de representação temática de uma absolutização entre bem (civilização, luz, progresso) e mal (barbárie, escuridão, regresso) – no que o ótimo Danç-Êh-Sá (2006) de Tom Zé é uma resposta pontual. Mas o mesmo não podemos dizer de Noites de gala, samba na rua (2007), novo disco de Mônica Salmaso e quinteto Pau Brasil. O apuro técnico e a confiança estilística presentes na cantora e no grupo desfazem qualquer possibilidade de incerteza, caso certo em tentativas de re-pensamento conceitual (no que, novamente, podemos encaixar o auto-intitulado descantor de Irará, Tom Zé). Aqui, o sotaque predominante é próprio de uma transmutação jazzística do impressionismo inveterado de Chico Buarque de Hollanda, obviamente com pitadas controladas (já normais?) de brasileirismos. Não se quer, com isso, dizer que Noites de gala, samba na rua é um compacto ruim. Mas, sim, que o desafio de atualizar a obra de Chico já se tornou algo quase tão grande quanto o debate que ele mesmo incitou, assassinando a (ou atirando pedras sobre o cadáver da) canção. E Salmaso, mesmo com toda polidez que a eleva a uma das mais destacadas posições do panteão da boa música brasileira atual, resvala na repetição, seja de coisas feitas por ela mesma, seja pelo alvo de sua homenagem. Isso faz com que o álbum obedeça a uma lógica interna que é a de intercalação de momentos altos e baixos, ziguezagueando entre a segurança técnica, o “bom gosto” do instituído, o pensamento ante o cânone e a reprodução. Construção (terceira faixa) e Beatriz (décima quarta/ última faixa) representam bem a que distância se encontram dois extremos de Noites de gala, samba na rua. Em Construção há um sério caso de perpetuação sistemática da novidade infeliz. O arranjo – uma das, ou a única amostra pela qual podemos demarcar o sucesso de uma regravação – se encolhe ante a grandeza e a qualidade da versão anterior (1971) de Rogério Duprat. Indiscutivelmente, ou foi mal escolhida, ou foi mal rearranjada. O conceito criado pelo quinteto Pau Brasil para Construção parece se ambientar num deserto, fazendo com que a dinâmica exposta pelo “jogo de tijolos” proparoxítonos de Chico se perca na falta de “densidade” aparente da versão. A execução é por demais lívida e pouco categórica, pondo em suspenso a ênfase maquínica criada genialmente na orquestração dupratiana. O veículo lento que carrega a sensação se arrasta muitas vezes num caminho lírico e lânguido, rumo aos novos ataques do timbre maravilhoso de Salmaso, pra novamente se perder. Mesmo alguns ataques em contratempo da flauta de Teco Cardoso não são suficientes, e também pouco satisfazem a conformidade conceitual. O inverso acontece com Beatriz. Não há qualquer tentativa de mudança, de onde só nos resta o conjunto mínimo de vestígios imperceptíveis de atuações separadas pelo tempo e pelo espaço. A abertura em ré e toda a progressão harmônica, o timbre do piano, a execução melódica perfeita, tudo, soa (ou tenta soar) como a gravação feita por Milton Nascimento n’O Grande Circo Místico, de 1983. Salmaso, num lirismo profundo, leve, encarrega sua eficiência de nos mostrar o mesmo caminho de Milton; eleva, mas não desvela, não marca uma trilha. Balizadas por esses dois exemplos, grandes versões como A volta do malandro (primeira faixa), Basta um dia (nona faixa) e Você, você (quinta faixa) vão aparecendo como confirmações válidas do compromisso ao qual se ateve a artista paulista na concepção do álbum. Na linda versão (com exceção do início, que peca na diminuição da tensão dissonante criada por Jobim) de Olha Maria (sétima faixa), o violão de Paulo Bellinati está melhor do que nunca, dando ao piano original da música um preenchimento harmônico maravilhoso. Todos os tensionamentos e fluidificações, antes feitos unicamente pelo piano, são melhorados da versão original, ficando agora a encargo de toda a banda. A cada momento um instrumento se destaca, intercalando-se num contraponto interessante, até o momento do instrumental jazzístico da parte final. Mas o ponto central do disco é mesmo o samba-canção Quem te viu, quem te vê, originalmente gravado em 67, fato que transparece no próprio nome do disco, tirado de sua letra (“suas noites são de gala, o nosso samba ainda é na rua”). Aqui, o acento jazzista presente em Olha Maria continua; em verdade, parece nem ser um samba, afora pela marcação tímida dos pratos de Ricardo Mosca e pelo contrabaixo acústico de Rodolfo Stroeter. O piano destaca figuras rítmicas diversas, muito livremente, e a música vai perdendo sua compostura dançante e dinamogênica, de onde podemos perceber uma continuidade apenas entre a voz de Salmaso e o padrão rítmico da dupla contrabaixo/ pratos. Só quando, na segunda estrofe, o violão de Bellinati é ouvido, devolvendo à sedimentação harmônica livre um pouco de conjuntura ordenada, é que a faixa começa a mostrar um pouco de consistência própria, ganhando um belo desdobramento. Os ataques da movimentação acordal param de se justapor e contrapor, deixando pra trás a defasagem; são instalados novamente na cabeça do tempo e do compasso. O sempre poderoso efeito das madeiras na lírica impressionista começa a transparecer com a aparição de Teco Cardoso na segunda metade da segunda estrofe: o efeito é delicado e alegre. Já na terceira parte, toda a banda consegue a conjunção do tensionamento textual (“hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria, quero que você assista na mais fina companhia”) com a subida de uma progressão melódica e a perda de tensionamento da descida melódica com o “bate palmas com vontade, faz de conta que é turista”. O sujeito parece ter expectativas em relação à presença da personagem de afeto na pista e na dança, mas nega o fato, sempre acompanhado pela música que o (s) cerca. Só no último refrão a música se aproxima da versão de Chico. A composição, que tem em suas bases uma modulação enarmônica (em Chico de dó menor para dó maior, em Salmaso de sol menor para sol maior) na passagem das estrofes pro refrão, tipificando uma extroversão do personagem buarquiano, em Salmaso recebe um novo tratamento, colocando em segundo plano a “abertura” caracterizada na melodia através da eliminação do uníssono vocal-instrumental (até no último momento, em que a flauta finalmente corresponde ao uníssono) e do caimento harmônico num acorde tretacordal, menos elementar e mais diversificante. Dentre todas, as que ficam no caminho, como Logo eu? (sexta) e Bom tempo (décima terceira) são, ou repetições do já realizado pela própria Salmaso, ou inclinações pouco expressivas de uma artista que, de tão recente e admirável, não pode ainda ser velha. Advento da extrema autocrítica artística de tempos não muito remotos, algo que nos eleve e resista às intempéries da velocidade contemporânea só pode passar pela idéia de caminho enquanto procedimento do próprio caminhar, um olho nos próprios passos e outro em toda humanidade, enquanto sopro de vida. Pra que não só Chico imagine, num relance, o artista no infinito. Pra que, menos num relance que num longo respiro, sonhemos com algo que brote à flor da pele. Leia também
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