
29/11/07
Havana
sem ti
Tua imagem nua ainda acompanha-me
pelas ruas da velha capital. As luzes ofuscam os olhos que
mergulham em impossibilidades. O pensamento voa no mesmo
ritmo dos dias que passam intensos. As imagens colecionadas
pela memória não são capazes de calar
a carência. Meu pressentimento confirma-se: parte
da beleza está perdida depois de tua ausência.
Enquanto tiravas a roupa, sem
pressa, jamais poderia imaginar que era para a despedida.
E que eu teria que realizar sozinho o sonho da viagem por
meses acalentado a dois. A tristeza que guia meus passos
pouco importa para os transeuntes, no momento em que a cidade
escancara seus paradoxos. E a brisa que sopra do Caribe
lembra o momento em que, pela última vez, teus seios
ávidos engoliram minha boca, no preâmbulo do
encontro no qual nosso amor seria desfeito. Depois, destilastes
palavras como se semeasse tempestades e rompestes inesperadamente,
o que até então não se imaginava tão
frágil, com lágrimas e soluços. Até
que fosse desfeito o encanto.
Por onde passo, casas decadentes
convivem com prédios reformados em cores gritantes.
Respeita-se o passado enquanto o presente implora a chance
de sobreviver. Os hotéis de luxo ampliam sua ocupação
da orla, em contraponto com casebres que explodem em feiúra.
Caem aos pedaços. As famílias multiplicam-se
e não mais cabem nos espaços. Carros modernos
rivalizam nas ruas limpas e bem cuidadas com automóveis
antigos, verdadeiras relíquias que parecem saídas
de filmes antigos. E no entanto, movem-se, enquanto imagino
teus passos juntos aos meus, no momento em que a lua paira
sobre o mar e os casais namoram despudorados no malecon.
Tinhas razão. As moças
oferecem-se nas ruas. E mesmo que sejam universitárias
as prostitutas, como teria dito Fidel, incomoda que elas
escancarem a realidade que nosso idealismo não deixava
ver. Darias risadas, eu sei, ao ver minha cara de espanto,
o ar desolado e a recusa óbvia, pois nada nem ninguém
seria capaz de entreter a solidão que carrego, povoada
de reminiscências.
Cuba está dividida.
O país revolucionário, que convive dentro
do outro, capitalista, observa de longe a fartura para poucos
e a ração que deveria ser a necessária
para muitos. Entre um dólar e um peso, dois mundos
equilibram-se precariamente. Enquanto tu esbanjas as alegrias
do excesso, que aqui daria para meses a fio, fico eu com
as constatações arrastadas penosamente, entre
o impacto de tantas novidades e a impossibilidade de compartilhar
sentimentos, desejos, afeto.
Apesar da dor, fiz a opção
pela distância e creio que será este o melhor
caminho. Não sei se tua pressa em encerrar o derradeiro
abraço tinha outro motivo senão o de esquivar-se
do ritual de arrumar as malas e recolher pela casa os restos
do que tinha tudo para ser duradouro. Por certo não
saberei. Tua presença deverá tornar-se rara.
E a saudade abreviada, pois de longe resistirás com
mais facilidade a tentação de voltar e refazer
o que implacável destruístes.
Ficas com a certeza de que
estás livre. Definitivamente. Teu riso solto podes
desfilar por aí, sem pesos e sem amarras. Amanhã,
eu sei, virá a alforria. Até lá e para
sempre, levas um pouco de cada detalhe guardado na fotografia
destes dias: as canções de Alberto Herrera,
teu nome gravado nas paredes da Bodeguita do Meio, os canhões
que ainda protegem o caís de ataques piratas fantasmagóricos.
Perdoas-me pela lenta agonia, pela madrugada insone, por
ainda estar aturdido pela tua beleza, que ofende e torna
feio o adeus. Vou rever teu retrato, deixar rolar o filme
destes meses, até que o cansaço vença
e o devaneio adormeça a espera de um outro dia em
Havana.
Leia
também
19/10/07
- Falta você
27/09/07
- A estréia
_________________________________________________
Hamilton Reis
edita o jornal Fato em Contagem, gosta de política,
cinema, fotografia. É formado em jornalismo pelo
Uni-BH. Amante das letras escreve aqui quinzenalmente. Fale
com ele: hrjornal@uol.com
|