
19/10/07
Falta
você
O moço demorou, mas
a reforma está feita. Cada parte da casa recebeu
a atenção que precisava. Aquela parede caiu.
De velha. Bem que você disse que ela não agüentaria.
Não dei ouvidos. Mas lembro do momento. Aliás,
de todos. E do susto. E da risada que dei logo em seguida.
As paredes não estão mais desbotadas, ganharam
cores vivas. Uma delas tem uma tonalidade suave de lilás
sugerida pela dona da loja de tintas. A pintura deu outra
vida a cada ambiente. Aquele azul que você escolheu
tive que substituir porque estava em falta.
A cozinha está nova
em folha. A geladeira que finalmente chegou, combina com
o fogão. Está um luxo. Os armários
embutidos ficaram perfeitos. O piso é fácil
de limpar e dei adeus às latinhas de cera. E aos
removedores de cera. Dei a enceradeira para aquela prima
caloteira, já que vender não ia dar mesmo
retorno.
Pensei em pedir um empréstimo
ao banco para comprar móveis novos. O tempo estraga
tudo. Tem coisas enferrujadas, outras que o conserto não
tirou a cara de velhas. E além do mais, tem o meu
desejo de mudança. Já não me sacia
mais apenas trocar algo de lugar. Não é segredo
que sempre gostei de decoração. E, afinal,
quem não gosta de coisas novas?
A biblioteca finalmente está
organizada. Nos detalhes mínimos. Cada papel no seu
lugar. Sim, eu sei, são numerosos. Mas que ninguém
se esqueça que vivo de papeis. Ou do que escrevo
neles e troco por dinheiro para pagar as contas, seria melhor
dizer. Por isso a necessidade de guardar tantos, vários,
diversos, muitos deles. Tem também o cheiro de tinta
da publicação que acaba de sair do forno.
Esse cheiro é insubstituível. Não tem
computador capaz de simular o prazer de tocar uma página
que acaba de ser impressa. Ainda. Nos armários as
coleções estão classificadas por assuntos.
Finalmente conseguiu doar as fitas de vídeo. Bastaram
alguns anos e uma mudança de tecnologia para que
todo aquele investimento fosse por água abaixo. Desfiz
de todas, até dos clássicos em preto e branco.
Alguns filmes nem tive tempo de ver. Claro que separei as
relíquias. Quando setembro vier e Um
toque de infidelidade quero copiar em DVD. Está
na minha lista.
Tive que reservar espaço
para as crianças. Elas cresceram, eu sei, mas para
mim serão sempre crianças. Embora nossa filhota
tenha trocado o tênis pelo salto alto e os doces pela
dieta, não deixo de vê-la como uma garotinha
que ainda precisa de colo, cuidado, palavras carinhosas.
Sei que ela cresceu, mas não consegui acompanhar
o ritmo. Nem mesmo consigo entender o que é aquilo
que ela escreve no blog. Parece outro idioma. E tive que
separar os quartos. Embora a diferença de idade entre
elas seja pequena, as duas parecem viver em mundos diferentes.
São amigas, confidentes, cúmplices. Mas cada
qual quis seu quarto, seu computador, sua televisão,
seu telefone... Acho que são consumistas demais.
Tento argumentar, mas acabo cedendo. Sentimento de culpa.
Sempre acho que as meninas estão carentes. Talvez
o problema não seja com elas.
Confesso que estou meio caída.
Não, não são as olheiras. Até
durmo bem. É algo da alma. Certa melancolia. Sabe,
agora que a casa está pronta andei pensando em fazer
uma plástica. Sei lá. Aprumar os peitos. Você
bem que ia gostar deles mais cheios. Mas a grana anda curta.
Vão ficar algumas dívidas, apesar do dinheiro
da venda do apartamento. Sempre se gasta mais do que o previsto.
E me empolgo fácil. Claro que sempre é pensando
no melhor para as crianças. Nada pessoal.
Para dizer a verdade está
tudo perfeito. Ou quase. Não posso mais negar. Falta
você.
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27/09/07
- A estréia
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Hamilton Reis
edita o jornal Fato em Contagem, gosta de política,
cinema, fotografia. É formado em jornalismo pelo
Uni-BH. Amante das letras escreve aqui quinzenalmente. Fale
com ele: hrjornal@uol.com
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