
08/02/08
Sete palmos de terra
Zé da Penha se abaixou
e beijou o chão. Às suas costas o sol despontava
ainda tímido. Com um ar de tristeza estampado no
rosto moreno, ele olhou a imensidão de terras à
sua frente e constrangido sentiu lágrimas rolando
pelo rosto. Poucas vezes isso tinha lhe acontecido. Naquele
momento rememorou toda sua trajetória. Ali tinha
nascido, crescido e procriado. Plantar, colher, dividir
com o patrão e garantir o sustento da mulher e dos
três filhos. Essa era a sua sina, esperando o destino
chegar. E agora o destino resumia-se em partir, deixando
para trás suas raízes. O gado dá mais
lucro, disse o coronel. Ele correu novamente os olhos pela
propriedade e os fixou na casinha de palha, construída
depois de alguns mutirões. Pensou nos muitos dias
vividos naquele lugar, amontoados na lembrança. Antes
de partir Zé jurou que um dia voltava.
Na rodoviária a cena
foi confusa. Os meninos chorando, a mulher impaciente e
a moça do serviço social falando coisas que
ele não conseguia entender. O governo não
ia ajudar, percebeu. A única coisa que entendeu foi
quando ela desejou boa sorte.
Quando chegaram ao barraco
do primo Zeca, o jeito foi acomodar as crianças em
um dos cômodos. Na primeira noite dormiram amontoados.
De Biquinhas até ali a única coisa que Zé
tinha certeza era de que Deus ajudava. Nas missas o padre
sempre tinha dito. E não iria mentir.
Os primeiros dias foram difíceis.
Mas logo na primeira semana encontrou vaga em uma transportadora.
Era longe: duas conduções para ir e duas para
voltar. E o leite das crianças subindo a cada mês.
A realidade se impondo cruel. Ônibus lotados, marmita
a tiracolo, o futebol quando o dinheiro dava. E o sonho
de ganhar na loto, um dos muitos hábitos incorporados
à nova rotina.
Quando menos esperava veio
o desemprego. Dias amargos. Mas ele não se desesperou.
Incansável na luta, sabia que era preciso sobreviver.
Viu os filhos crescerem e faltar escola. Nos tempos em que
a fome apertou, a saudade da roça bateu forte. As
espigas de milho anunciavam sempre a mesa farta. E as remiscências
o levavam de volta ao dia em que partiu e ele repetia
a princípio com o brilho que a esperança acende
nos olhos e que aos poucos foi se apagando que ainda
ia voltar.
Ao retornar ao mercado de trabalho,
depois de quatro meses e onze dias, ganhava menos e trabalhava
mais na fábrica. Mas a necessidade era imperativa
e não dava tempo para distrações. Eram
assim os dias, mas aquele, parecia ter sido mais longo e
tinha sido cansativo para Zé da Penha. O encarregado
avisou que teria hora-extra. Precisavam produzir uma grande
remessa para o dia seguinte. Quem recusasse tava na rua.
E o Sô Júlio, dono da maioria dos barracos,
tinha avisado que ia aumentar o aluguel. Na volta para casa,
Zé parou no buteco para tomar uma pinga.
Teve pouco tempo para prestar
atenção na algazarra que descia a rua ao lado.
Uma bala vinda da escuridão cruzou o ar e se alojou
em sua cabeça. Na página policial explicaram
que a batida era para prender traficantes. E ninguém
soube que ele tinha abandonado o cigarro por recomendação
do médico do posto.
Finalmente voltou a Biquinhas.
O ritual foi simples, pois o dinheiro era pouco. O coronel
mandou um representante, porque o Zé ia ser enterrado
justo no dia de comício do Democratas. Mas a família
compreendeu, pois generosamente ele permitiu que o corpo
fosse enterrado perto do curral, como era o desejo do morto.
Pela última vez a terra
beijou as mãos de Zé, em sinal de respeito.
E reservou sete palmos para que ele pudesse se saciar no
céu.
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2007
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Hamilton Reis
edita o jornal Fato em Contagem, gosta de política,
cinema, fotografia. É formado em jornalismo pelo
Uni-BH. Amante das letras escreve aqui quinzenalmente. Fale
com ele: hrjornal@uol.com
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