
10/09/08
A PUTA
Maria, ouvistes os tambores? Convocai os senhores para o
vosso banquete de pecados, entre os maus tratos das vossas
coxas, a rebolardes as vossas ancas, na dança surda
das melodias que encantam. Pegai vossos filhos no meio do
asfalto, entre as pontas dos saltos, revirogai os atos falhos
das juntas maldormidas, feridas comidas pelas barbas, pêlos,
sem chance de reparos, aparos, de decência. Tende
complacência dos meninos, pobrezinhos, tão
descrentes do vosso leite. Secastes a boca, peito e partes
baixas num deserto extenso. Revertestes o milagre em vinagre
e picastes migalhas de vidro. Vivos vossos homens vos imploram,
pregados nas madeiras da construção. Ilusão.
Fazem malabares pelos céus, querem contemplar os
vossos véus. Ave, Maria, chegai de graça...
Chegai de tanto sofrer. Chegai desse deslumbre, que vós
nunca quisestes ser santa. Pobre Maria, o que fizeram convosco?
Já não dançais, não cansais
e nem gozais. Correi, Maria, que a vida passa, como já
passou para os vossos. Deixai de besteira e botai aquela
saia, a sandália e levai os meninos para passear.
Chegai de novenas, de pequenas mortalhas, desse descaso.
Correi para a rua, dançai até tarde que vosso
corpo ainda tem viço, tem resquício de vida.
Ouvi o samba, correi na avenida, que a vida não é
todo dia festa, lantejoula e fantasia. Tem choro na bateria.
Mostrai aquela fita, botai cor nas macieiras, seda-cabeleira
em vivos cachos; montai o bloco dos fogos encantados e mostrai
que vós sabeis sambar. Sem acanho, gestos tacanhos,
tudo grande; abri os braços, mostrai os dentes, que
é assim que as festas começam, com o anfitrião
puxando pelo braço, cheiro de sovaco, ruge e transpiração.
Porta-bandeira bailarina desfila serpentina no meio do salão.
Deitai, Maria, sobre vosso macho com escracho e sem culpa.
Que o amor também comunga de outro jeito, outra fôrma,
boca com boca, língua e dente. Ajoelhai que não
careces mais de reza alguma. Que de reza estamos fartos
todos nós.
Conto extraído
livro “Dona Estultícia”.
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04/08/08
- PAPAIA
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Gabriela
Kimura é escritora e nasceu em 1973, na
cidade de Ourinhos, em São Paulo, e mora na capital
paulista desde 2005. Formou-se em Produção
Editorial e publicou seu primeiro livro, Dona Estultícia,
em 2006, pelas editoras Alaúde e eraOdito. Participou
ainda da antologia de contos Doze, pela editora Demônio
Negro. Colabora com revistas e sites de literatura e trabalha
como redatora em uma agência de publicidade. Tenta
manter o blog
http://oplayground.zip.net.
Fale com ela:
gabrielakimura@yahoo.com.br
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