
18/1207
Patchworking ou Estréias são
sempre estréias
Estava aqui, sentada em frente
ao computador, pensando. Editor de textos aberto, cotovelos
apoiados sobre a mesa, mão direita segurando o queixo
como fazem os mineiros (sempre ouvi que mineiro pensa com
a mão no queixo), tirando o esmalte do indicador
da mão esquerda com o dente, as unhas pretas recém-pintadas
já destruídas pela ansiedade que não
me deixa. Pensando sobre o que escrever depois de tanto
tempo.
Ela era ainda jovem, em seus
vinte e poucos anos e mais alguns meses, jovem ainda, um
mundo a descobrir. Seus cabelos eram ondulados e cheios,
infinitos fios, indomáveis. Um castanho que doía
à primeira vista, brilhante e avassalador, um leão
recém-saído do meio da mata, inteiro juba
e orvalho. Seus olhos eram cor de caramelo, daqueles que
se esverdeavam ao sol e se escondiam na noite, à
espreita de qualquer sinal de luz, e seu olhar rasgado nos
olhos amendoados davam à moça uma das faces
mais lindas já vistas. A boca fina e delicada, e
um sorriso largo e lento. Mulheres que sorriem devagar são
raras, e são essas as que conseguem dizer tudo em
um sorriso apenas.
Decidir o título para
esta coluna foi fácil. Por muitos motivos. Casmurra quer dizer pessoa difícil, teimosa, sorumbática,
taciturna. O primeiro e mais óbvio motivo é
que adoro Dom Casmurro, mas só isso seria bobo demais.
O segundo motivo, não tão óbvio, é
que minha música preferida é Sullen Girl,
da Fiona Apple. E sullen, em português, quer dizer
justamente casmurra. O terceiro motivo é que adoro
escrever sobre os casmurros, e minha dissertação
de mestrado foi sobre pessoas assim, que se sentem inadequadas,
que não cabem exatamente em lugar nenhum,
que não se encaixam em espaços pré-estabelecidos.
E assim também sou eu.
Um abraço. Foi assim
que começou. Abraçou-me e pude sentir que
seu pescoço se contorcia em busca de afago, me abraçou
de forma aconchegante aquela moça de cabelos leoninos
e olhar tão atropelador, e quase e digo quase
porque às vezes invento, sem querer, as razões
que mexem com meus sentidos , quase ouvi um ronronar,
bem baixinho, como se ela me entendesse. Abraçou-me
por horas, dias, meses, um abraço infinito que trocava
e gerava calor, como em uma comédia romântica
qualquer, como se faíscas saíssem de nossos
corpos. Radiante. Eu estava radiante.
Tem mais de dois anos que não
escrevo como compromisso. Passei umas horas pensando no
que eu devia dizer. Cinema? Livros? Música? Séries
de TV? Um pouco de tudo? Falar de mim, inventar vidas? Não
sei se minha mãe ou meu pai, mas um dos dois me dizia
que minha indecisão vem do fato de eu sempre ter
muitas opções. Se fossem poucas, ou nenhuma,
eu faria sem reclamar. Mas me deram esse espaço pra
eu falar do que quiser. E aí eu não sei o
que eu quero falar, pronto.
Abraçou-me novamente
por alguns longos minutos, anos, e eu me derretia naqueles
braços suaves e traiçoeiros. Foi um abraço
como em um pulo, um bote, um ataque, e nada pude fazer senão
me afundar naquela mulher que varria toda a racionalidade
para debaixo do tapete, e então o puxava sob meus
pés, e eu esquecia de mim. Ela era forte e extremamente
doce, como se deixasse claro que sua delicadeza era um bônus
e uma escolha, e não sua dona. Ninguém nunca
domaria aquela mulher, sim, mulher, que naquele momento
afrouxou os braços, me olhou fundo e me disse, enquanto
eu via meu reflexo naquele mar caramelo-esverdeado: eu gosto
de você.
Pensei sobre o ato de escrever. Na responsabilidade que
tem a palavra escrita, registrada, documentada. Escrever
é não poder voltar atrás. A palavra
é uma marca, palavra gravada na pedra. Escrever,
então, é ter certeza? Esforcei-me pra pensar
nas certezas que tenho na vida. São muito poucas.
O meu ato de escrever, a minha escrita, será sempre
uma seqüência de colocações inadequadas
que fazem muito sentido, pra mim, no momento em que as escrevo.
Depois - anos, dias, minutos depois -, eu já não
sei. Talvez eu pense demais justamente para evitar possíveis
arrependimentos. Mas o fato é que quase sempre discordo
do que eu mesma escrevi, mas raramente me arrependo de ter
escrito.
Aquelas palavras me arrebataram,
e não havia nada a fazer senão me deixar levar.
Seu nome vinha do mar, e sua força era netuniana;
tudo naquela mulher era naufragante. Eu queria me perder
em seus olhos, seus cabelos, naqueles lábios que,
tenho certeza, tinham gosto de sal. Eu queria outra vida,
outra chance, em que aquela gata-mulher-leoa salgada e cor
de caramelo pudesse jogar suas ondas sobre mim todas as
noites, sobre as areias e sob o luar. E nas noites sem lua,
seus olhos iluminados me indicariam o caminho de seus desejos.
Pensei sobre as vidas invisíveis,
sobre as minhas vidas invisíveis, sobre o que eu
queria ser, sobre as pessoas e mundos que imagino. Sobre
as histórias que invento e nunca passo para o papel.
Sobre as idéias que acabam em uma gaveta qualquer,
não das de madeira ou metal, mas aquelas gavetas
internas, aquelas que guardam pedaços de nós,
como nas pinturas de Dali. Os papéis de verdade nunca
ficam em gavetas, porque sou inquieta, impaciente, apressada
demais pra deixar qualquer texto escrito no escuro. Os papéis
de verdade sempre se transformam em alguma coisa. Talvez
por isso eu escreva menos a cada dia que passa.
Não sei bem se foi ela
ou se fui eu. Nos encontramos na esquina, entre livros,
um falso casual. Sentei-me a seu lado e vi seus pés
balançando no ar, como uma menina cujas pernas ainda
não alcançavam o chão. Vi-me refletido
no vidro à distância, e o tempo parecia rir
de mim. O abraço, que então já se seguia
religiosamente às nossas conversas, não foi
mais o mesmo, rápido, frio, repleto de culpa remoída,
minha e, não sei, dela, meus pés firmes no
chão, temperatura inalterada. Olhei fundo em seus
olhos e não mais vi meu reflexo, como um vampiro
recém-descoberto. Ou talvez tivéssemos os
dois nos perdido, um do outro, de nós mesmos.
Pensei sobre brincar com histórias
que nunca termino, ou que termino, mas não conto
pra ninguém. Pensei sobre as histórias que
já escrevi, pequenos recortes de vidas que imaginei.
A literatura é a arte que mais oferece espaço
para os casmurros sem cair no grotesco. A sensação
de inadequação não pode ser descrita
em nenhuma imagem, pintura ou escultura com tanta verossimilhança
como na literatura. Não existe inadequação
sem ser dita. Por isso o cinema me atrai tanto; o cinema
pode ser literário.
Deu-me um beijo na bochecha
bem próximo a meus lábios, mas o cheiro salino
havia desaparecido. Não sei se foi ela ou se fui
eu. Ainda era possível ver em seus longos cabelos
os movimentos do mar, como é possível ouvir
ruídos em uma concha há muito longe das águas.
Mas era evidente o fim, a despedida. Senti um aperto no
peito, como um pequeno infarto, e meu cansado coração
soluçou. É assim a vida, pensei, ela será
leoa e mar para sempre, mas nunca mais para mim.
No fim, não sei ainda
exatamente sobre o que será essa coluna. Mas, como
em tudo que é meu, como em tudo o que faço
e escrevo, ela terá muito de mim. Seja disfarçada
em meus parcos contos de narradores inadequados, seja descarada
em minhas indignações sócio-culturais,
tudo o que crio sempre leva um muito de mim. E eu sou assim,
inadequada como meus personagens, e muito incisiva em tudo
que acredito. E é porque me deixo em cada canto que
não há como voltar atrás. Palavra gravada
na pedra, um ângulo meu por aí. Pronto, escrevi.
Já não sei o que penso disso tudo.
Lá vou eu começar
tudo de novo.
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Gabriela
Fróes tem 26 anos e é mestre em Literaturas
de Língua Inglesa, mas trabalha com localização
de software, porque está na fase de achar que não
se mistura trabalho com paixões. É casada
com Ricardo e só dorme com a mão dele em seus
cabelos. Tem medo de tudo, essa Chapeuzinho. E não
tem vícios (salvo a mania de organização),
mas leva um dia de cada vez. Fale com ela: gabrielafroes@gmail.com
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