
30/12/07
Você não usa nada?
Um conto das ruas. Qual rua?
essa aí, da sua casa mesmo.
João descia a rua calçando
meias por debaixo das sandálias de couro barato.
Ao seu lado, Alice. Os cabelos embaraçados. Ambos.
Voltavam para o lar, conversavam, apenas o trivial. Lá
embaixo avistaram um aspecto maluco um tanto quanto mendigo
caminhando. O rapaz um tanto quanto mendigo disse, e aí?
E aí, replicou João em seguida. Pediu um gole
daquilo que João carregava debaixo do braço,
uma garrifinha de água. Nunca negava pinga, não
seria desta vez. Claro, pode tomar. Tomou e proseou. Eu
sou músico, Gaetaninho dos Teclados. Sério?
Balançou o pescoço. Não acredita? Eu
canto para vc ver. Então canta. E cantou:
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada...
Bommmm! Pensaram, mas não
disseram.
O rapaz fitou Alice: ela apenas
observava. Desconfiou que o maluco um tanto quanto mendigo
fosse mesmo o músico, Gaetaninho dos Teclados. E
então? Interessante. Com teclado seria melhor, João
disse, dando passos à frente, querendo finalizar
o papo.
Instantes de silêncio.
Romperam. Um tanto quanto mendigo perguntou, você
não curte nada? Nada. Nada? Nada! Impossível.
Nem cigarro? Nem. Só álcool. Só? Só.
Nem... remédio? Nem.
O maluco um tanto quanto mendigo
desconfiou. Com essa cara aí? Duvido. Nem ...? Nada,
já disse. E você?, perguntou erguendo a cabeça,
virando-se para Alice. O que? Também não curte
nada? Curto. O que? Tudo. Como assim tudo? Tudo. Não
é possível. Pois é. Tudo. À
que você se refere? Tudo. Abismou.
Nós vamos indo sabe,
queremos ficar juntos, escorando a cabecinha no ombro e
chora. Ah tá, entendi, já passou da minha
hora. Foi um prazer. Seria uma honra vê-los apreciar
Gaetaninho dos Teclados...
E onde seria, por estas bandas?
Por aquelas; apontou com o dedo. Farei o possível.
Meneou a cabeça e finalizou, muito agradecido, bom
descanso pra vocês. Igualmente. Desceram a rua de
paralelepípedos; escorreu o braço até
a cintura de blusa listrada dela. O aspecto maluco um tanto
quanto mendigo dobrou a esquina, preparou-se para atravessar
a via. Mas só se preparou. Não deu. Antes
de pisar a faixa de pedestres um jovem acelerava o novo
lançamento da moto que você compra por suaves
187 parcelinhas. Deu um rasante. Aterrissou o maluco um
tanto quanto mendigo na capa do noticiário do dia
seguinte ao sábado.
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O catador de latas e papelões
apareceu na estória. Pegou o jornal. Apreciou, foto
bonita na capa. Este e mais uma vasta dúzia de pilhas
de jornal que a dona Joaquina sempre lhe guardava. Já
era freguês ali. Sua carriola estava repleta, tinha
até uma bandeirinha do Brasil, flamejante. Agora,
Gaetaninho dos Teclados pegava carona na carriola e flamejava
junto à bandeirinha verde-amarela. Passeou ainda
bastante naquele dia, ruas e avenidas, faróis, viu
praças, ouviu conversas, tomou vento...
Gaetaninho. Ao menos, teve
um final politicamente correto naquela vida: acabou reciclado.
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Gabriel
Pansardi Ruiz é jornalista ainda não
graduado, reside em Bauru-SP e gosta de rock ´n roll.
É editor do jornalístico cultural "Revista
Ponto e Vírgula", veiculado pela
web rádio Unesp Virtual, onde também produz
reportagens para os programas "Raiz Social" e
"Ecoando". Mais escritos no seu
blog. Escreve todas as segundas. E-mail: gabrielpruiz@yahoo.com.br
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