
21/11/07
Pai, não quero mais ser
palhaço
"Nas mínimas
coisas fazemos escolhas. Escolher entre ir a um show do
Chiclete com Banana ou não, é uma escolha
política" - Fred 04, vocalista do Mundo Livre
SA
A frota de carros e de caminhões
encostou, abriram-se as portas. O terreno já fora
antes preparado. Hastes, postes, fantasias e a lona colorida.
Homens descamisados, risadas e malas, muitas malas.
Deus disse "faça-se o circo": a tenda ergueu,
o palhaço surgiu, a poltrona encheu e o público
aplaudiu. Mas o público era diminuto, enxugava a
cada dia. A bilheteria às moscas. Os filhos, a geração
futura, entretanto, já se acostumava à cidade,
estudava, fazia amizades ...
Não fora despreparo,
nem amadorismo: não erravam apresentação
alguma. Nem eram os números, a maioria deles fugia,
sabiamente, do tradicionalismo dos circos enferrujados.
Misturavam bonecos gigantes, trapezistas e acrobatas, dançarinos
que somavam passos de street dance com malabarismos e força.
Eram incríveis atuando; era como se o palco lhes
dessem talento.
Não entendiam, não conseguiam pensar em como
sair daquela situação. Tentaram inovar, acrescentar
elementos. Realizaram números arriscados mesmo sem
a segurança e o vigor necessários para exibi-los
à platéia.
Fizeram propaganda no rádio, intensificaram a caminhonete
que anunciava o circo nos alto-falantes. Os palhaços
saíram da tenda. Ganharam as ruas a fim de arrebatar
espectadores. Estavam ávidos para que mais pessoas
rodassem as catracas azuis. O dinheiro já não
sustentava as despesas e começava a comprometer o
almoço, a janta.
Era a segunda cidade consecutiva
e o mesmo insucesso de público. Os pequenos já
pensavam serem "outra coisa na vida". Questionavam
insistentemente os pais, que tocavam o circo desde os tempos
em que o ato principal era o homem bala, o monocliclo e
a mulher-macaco.
Um dia, já maquiado,
José - filho do principal palhaço do circo
- recordava que colegas zombavam dele nas partidas de futebol
no campinho próximo ao acampamento circense; disse
ao pai:
*Sou um palhaço do
circo sem futuro
A lona está rasgada no alto
Não há aplausos e nem platéias
É um drama
Um drama, essa nossa tragédia que é viver
O amor de outrora, hoje fere e cansa
Não quero mais ser palhaço
Não tenho dinheiro para sair,
me divertir por aí
O pai, tonto, não soube
o que responder. A apresentação daquele sábado
estava prestes a começar. Disse que depois dialogariam
sobre o assunto. Entretanto, carregou aquilo ao palco. Desamparado,
saturado, falou à platéia, despejou nela pensamentos,
explicações, frases encurraladas na garganta:
- Marcamos e fomos intransigentes
com o horário das apresentações. Tivemos
o pensamento de oferecer outro tipo de lazer e entretenimento
ao povo, que aliasse arte, diversão, conhecimento,
dedicação e vida. Não deu certo. As
oito, nove horas da noite competição é
desleal. As pessoas têm outros afazeres, na sala,
no sofá de casa, na frente da tela etc. O espetáculo
agora acabou, a lona rasgou, não temos salário,
esgotamos nosso vocabulário...
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Gabriel
Pansardi Ruiz é jornalista ainda não
graduado, reside em Bauru-SP e gosta de rock ´n roll.
É editor do jornalístico cultural "Revista
Ponto e Vírgula", veiculado pela
web rádio Unesp Virtual, onde também produz
reportagens para os programas "Raiz Social" e
"Ecoando". Mais escritos no seu
blog. Escreve todas as segundas. E-mail: gabrielpruiz@yahoo.com.br
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