
25/03/08
Ensaio sobre a nudez
Ei moça adocicada dos
lábios de mel:
Escreva. Faça parar
a vida, no caderno, na rua, na solidão do computador,
na carona da circular, na parede do banheiro, no trem, escreva!
_E por que queres tanto meu
senhor?
_Porque eu quero vê-la.
_Ver-me?
_Sim. Ler as palavras que insistes em esconder-me, lhe revela
os pensamentos, lhe revela as idéias, as lutas e,
sobretudo, lhe revela a alma. Deixa-a nua. Completamente.
E deveis saber que as mulheres são lindas. A maior
maravilha natural que Deus poderia criar. Mostre-se.
_Ah, sim - moço safado
- entendi suas intenções.
_Que bom, vejo-a ser uma pessoa de vasta inteligência.
Mas, o que me diz, vais escrever algo e mostrar-me?
_Não!
_E por que não menina?
_Porque não quero que me vejas despida. Tenho vergonha
da minha nudez. Estou fora dos padrões estéticos
(poéticos) aceitáveis. Peco nas celuligraficas,
desconheço regras de estriação...
_Huumm, compreendo. Mas não
se importe com os “pecados” que mencionou, praticamente
não difere das pessoas a vossa volta e, mesmo que
diferenciasse, repito: é coisa pouca, temos outras
causas importantes para nos ocupar.
Entretanto, se a vergonha for, mostrar-se nua, tudo bem,
nós temos medo do que as pessoas podem pensar ao
nos ver nus.
_Sim, a vergonha és
esta mesma que acaba de discorrer, senhorito.
_E então, não quer despir-se mesmo?
_Que atrevido!
_Você entendeu. O que
me diz? Mostre-se, deixe-me ver sua alma, através
das palavras que escreve!
_Ok, você venceu e os vencedores merecem batatas.
Arrancou do bolso uma grande
batata selecionada do campo e lançou-a com extrema
força no senhorito. Ele, em pé, rapidamente
encolheu-se e moveu os braços e mãos para
proteger o rosto. Passou raspando. Quando acalmou-se, olhou-a:
ela ouvia músicas em um grande fone de ouvidos e
lixava as unhas, o fundo branco, com o semblante tranqüilo.
Esticou o indicador, deu três batidinhas no ombro
da moça que trajava um vestido cor-de-rosa lindo:
_Sim, pois não, em que
posso ajudá-lo senhor?
Que loucura – pensou.
Ao invés de dizer qualquer
outra palavra, a moçoila preferiu apontar o dedo
para um móvel estacionado ao lado deles. Um livro
repousava solitário sobre o criado mudo.
_O que é isso?
_Um livro!
_Estou vendo!
_Então por que perguntas?
_Ah, seja gentil, sou tão educado, isso já
bastaria para uma conquista. Veja o trabalhão que
estou tendo. Só quero lê-la, só isso.
_Só isso? Que pena – falou olhando para a lixa
e as unhas.
_Seja gentil! – disse sorrindo.
Ganhou outro sorriso de volta.
Lembrou-se do livro. Foi em sua direção, mas
sentiu-se travado. Lucy agarrou-o pela camiseta, impedindo-o
de alcançar o livro dourado.
_Espere – disse harmoniosamente.
_Pronto, agora sim.
_O que você fez?
_Lembrei-me que precisava enviar vibrações
positivas pra mamãe. Ela pediu-me, ia fazer um curso
para aprender a ser feliz - disse-me que agora - que a felicidade
era questão de dias! Então, acabei de mandar
as vibrações senão depois podia esquecer-me.
Estava impaciente, queria abrir
logo aquele livro. O livro dourado.
_Posso? – disse desviando
o olhar em direção ao livro.
_Pode!
Segurou-o. Não era exatamente
um livro, mas um caderno de anotações. E,
percebia-se logo, havia muitas coisas escritas, marcas de
um caderno que vai de cá para lá a todo instante.
Resolveu abrir numa página aleatória:
Assim como quero aprender um pouquinho de cada religião
e ir pro céu com todas elas
Quero aprender cada pouquinho do seu corpo; observar atenta
a sujeira escondida na sua unha, achar as perebas e delas
cuidar;
beijá-lo na testa, entre as sobrancelhas, descobrir
as pintas, sugar o cheiro da tua boca e pele...
Não vou me aborrecer
com a sua cabeça gorda de esquecer todas as coisas,
talvez meu pai tenha sido assim algum dia; nem vou aborrecer
com o seu andar torto e seu bafo de onça, no fim
do dia
Não vou ligar se
você esquecer de me ligar porque estava entretido
nalguma conversa de boteco sobre futebol, política,
sexo ou sobre mulheres. E o principal: não vou ligar
se as pessoas que lá estavam eu goste ou desgoste,
se são amigos ou não.
Provavelmente eu vá
pensar em vc toda vez que abrir a geladeira e encontrar
potes de geléia de morango
Toda vez que ver uma notícia sobre luxo, naquele
jornaleco de merda ou encontrar o livro da Patrícia
Mello num sebo barato
Provavelmente me recorde.
Toda vez que ouvir alguém divagando sobre Comte e
lembrar daquele seu papo furado que não levava a
nada, de divagações vagas;
Ou quando vier com aquela estória de felicidade em
todos os momentos da vida
Nem vai fazer diferença
se me beijares o beiço ou a vulva, contanto que beije.
Não fará diferença se trará
um copo de leite ou uma cesta de café na cama, contato
que o faça quando estiver afim.
Nem fará diferença se fume maconha, cigarro
ou o que quiser, com a condição de que seja
lá do outro lado da rua, meus pulmões são
delicados;
...
Não terminou de ler.
Havia mergulhado nas palavras e quando se deu conta ergueu
a cabeça para ver o que Lucy fazia. Os quatro olhos
se encontraram, refletidos um no outro, ela fitava-o ansiosa,
pronta para dizer:
_Agora que estou nua, é
a sua vez de despir-se.
Leia
também
12/03/08
- E-lixo parte 3: Mas afinal, por que tanto alarde?
05/03/08 -
E-lixo parte 2: Sucata digital saindo pelas janelas.
25/02/08
-
E-lixo parte I: E-ditorial
11/02/08
-
0,5 ml de lágrima
21/01/08
-
Travessuras na sala de aula
14/01/08
- Free o que mesmo?
07/01/08
-
O ciclo
2007
___________________________________
Gabriel
Pansardi Ruiz é jornalista ainda não
graduado, reside em Bauru-SP e gosta de rock ´n roll.
É editor do jornalístico cultural "Revista
Ponto e Vírgula", veiculado pela
web rádio Unesp Virtual, onde também produz
reportagens para os programas "Raiz Social" e
"Ecoando". Mais escritos no seu
blog. Escreve todas as segundas. E-mail: gabrielpruiz@yahoo.com.br
|