16/07/08
Cicatrizes
sorridentes
Desde novo foi
criado em um ambiente muito conturbado: o pai era um andante
descabido, e mãe uma lavadeira de roupas desamparada.
Nunca tiveram conforto algum e por várias vezes passaram
fome. Seus irmãos eram perdidos. O mais velho tentava
a sorte com mulheres ricas e nunca foi feliz em suas investidas.
A irmã era mãe de duas crianças e o
marido a violentava sem se importar com a presença
dos filhos.
Ele, largado, deixado de lado e esquecido. Comia migalhas.
Quando criança fora abusado várias vezes por
todos da família que queriam desafogar mágoas,
complexos e desafetos. Não importava o grau de proximidade.
Era o lixo onde se despejava os sofrimentos e desilusões.
No início não entendia o que acontecia. No
envelhecer, distante da inocência e perto de rugas
e traços rígidos na pele, já não
sabia mais o que era moralmente certo. Os excessos da família
acabaram por fazer parte da sua estadia dentro de casa.
Um sorriso alargava a face quando os ventos embalavam um
brinquedo comum: a pipa de papel. A vida era lembranças
fúnebres e felizes. No vilarejo, sua história
não era velada. Já fora oferecido por parentes
a outras pessoas, homens cheios de posse e pedófilos,
que queriam garotinhos para esquentar seus leitos. Tornou-se
uma pessoa sofrida, sem preconceitos, sem medo. Não
era gay, não era heterossexual, não era. Esquivava-se
de afetos e das pessoas.
Com 15 anos seus interesses mudaram. Acostumado com a exploração
do seu corpo, usava-o para conseguir independência.
Atrás do vestiário, uma nota de 10 reais era
o inicio da nova fase. Decidiu juntar tudo que conseguisse
para sair da cidade. A família, cada vez mais desorganizada,
desmantelava-se em abismos. O pai sumira. A mãe trocava
água por álcool, e comida por entorpecentes.
Seus. Na praça da cidade, um senhor de meia idade
o convidou para uma conversa.
- Não tem medo de conversar com estranhos? Perguntou.
- Não. Se fosse alguma ameaça, a única
coisa de valor que tenho é minha vida e se me matasse,
nenhum mal me faria, porque entendo o sentido da morte.
Respondeu.
- Então o que fazes aqui sozinho? Indaga o velho.
- Não tenho ninguém que se preocupe comigo.
Ríspida réplica.
- Como pode alguém abandonar um garoto tão
bonito? Se estas sozinho no mundo, podes viver comigo onde
moro. Se fores livre não tem o que perder. Proposta
direta
- Não tenho como pagar. Afirmação convicta.
- Arrumo-te um lugar para ficar. Aguardando resposta.
O menino, ressabiado, tomado de dúvidas contra aquela
figura envolvida num carro inalcançável, deu
às costas ao velho e procurou abrigo debaixo de um
Jacarandá.
O carro ficou parado no mesmo lugar à espera de alguma
reação do menino. Sentado, veio-lhe à
mente, toda sua vida naquela cidade. Sem pestanejar levantou
e foi em direção ao velho que precipitava
em arrancar o carro. Bateu no vidro e fez duas exigências.
Calados, os dois foram até a capital.
E foi lá que o encontrei, na estação
do metrô com o dinheiro suado nas mãos. No
arranque do vagão, percebi sua presença e
sua beleza, coberta por cicatrizes escondidas atrás
de um sorriso que ele aprendeu a imitar.
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Frederico Caiafa é
Estudante de Letras - Born in 80s. Daqueles curiosos
que não desistem de conhecer algo desconhecido. Tento
transcrever em cada linha aquilo que vivo ou crio, não
tenho muita certeza do limite nesta relação,
porém, me arrisco na corda bamba sem pensar duas
vezes.
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