
13/02/08
A vida não
é bem um piquenique
As pessoas costumam ser previsíveis.
Nada mais previsível, ainda, que um conto ou crônica
sobre a vida comum e rotineira dos urbanóides,
esses seres que circulam pelas ruas das metrópoles
e que se relacionam com as pessoas e os espaços da
cidade, atribuindo novos e esquisitos significados as suas
vidas, que mais parecem monólogos.
Num ano que desponta, a previsibilidade
é total: projetos, planejamentos, alvos que se estabelecem.
Mais previsível ainda é o que se alcança
ao fim de cada ano: 50%? 30%? 15%? Quase nada...
As pessoas costumam delirar,
é sempre assim: - Esse ano vou fazer diferente.
Vou fazer atividade física, fazer cursos para meu
aperfeiçoamento profissional, vou sair somente aos
sábados e nada de muita cerveja. Além disso
vou largar o cigarro, vou comer só coisas saudáveis
(em todos os sentidos) e não vou dar confiança
para os colegas de escritório! Vou encontrar um cara
legal, namorar sério e largar dessa vida de só
arrumar podreiras... Ilusão. Pura ilusão
que desvanece no ar como fumaça.
Catarina uma mulher
bem colocada profissionalmente, com quase 40 anos de idade,
alta e bem torneada, com cabelos e olhos castanhos, pele
alva com pequenas sardas nas bochechas rosadas , após
o término de um noivado de onze anos, afirmou com
veemência que iria se jogar e que jamais
iria se sujeitar a outro homem que não lhe desse
o devido valor. Afinal, foram anos de espera sem proveito
algum.
Primeiro, a faculdade. Depois,
a pós-graduação e, por fim, a estabilidade
financeira. Ela, um pouco mais velha, aguardava pacientemente
a formação de Filipe. Ele parecia tão
empenhado! Tão dedicado à construção
de um futuro seguro! Era compreensível o fato de
que dispunha de pouquíssimo tempo para fazerem aquelas
coisinhas de casal: saídas para o cinema, jantares,
teatro, piqueniques no Ibirapuera.
Catarina esperava. Pacientemente,
esperava.
Certa feita, Filipe anunciou
uma promoção. Ficou um tempo desaparecido,
pois certamente tinha novos afazeres para desempenhar. Ele
que já não costumava ligar muito, deixou de
ligar de vez para Catarina, que sequer conseguia ela mesma
completar ligações para ele. Sinal de fora
da área, caixa postal, longos toques
ou simplesmente ocupado. Catarina começou a suar
gelado. Será que tinha feito algo errado? Será
que tinha dito algo inadequado? Será que tinha forçado
a barra?
Espera, aí...
Como eu poderia ter feito algo, se nem mesmo temos nos visto?!?!?!
E essa pergunta funcionou como uma lâmpada
acesa sobre sua cabeça. Um calafrio correu-lhe a
espinha e, de repente, por coincidência, um sinal
sonoro de mensagem recebida em seu celular. Era Filipe.
Ele dizia:
Prezada Catarina: grato
pelo apoio. Foi bom o tempo que estivemos juntos. Não
dá mais. Viajei a trabalho. Boa sorte. Depois conversamos
melhor.
Bege. O teto ficou bege.
Passado algum tempo, Catarina
encontrou algumas amigas para degustar vinhos e charutos
num restaurante da Alameda Lorena. As companheiras que entre
si comentavam a dedicação cega de Catarina
a Filipe, aguardavam ansiosas pela amiga que agora parecia
ter se descolado, que enfim parecia ter percebido que a
vida não é bem um piquenique.
Ela chegou. Radiante. Vestido
preto, colo à vista, cabelos com fios levemente dourados,
longos cílios palpitantes e lábios exuberantes.
As amigas receberam-na com palmas, assobios, brindes e gargalhadas.
Essa era a maravilha da vida na metrópole. Do modo
de vida urbano, frenético e ágil. Pessoas
iam, pessoas vinham... Tudo de passagem, tudo temporário.
Vida inteligente. Trânsito, asfalto, concreto, enchentes,
sirenes de ambulância e poluição.
- Amiga! O que aconteceu? Que
exuberância é essa? Ao que Catarina,
sorridente, respondeu:
- Nem te conto... Vida nova.
Filipe é página virada. Estou super feliz,
mega satisfeita e ultra realizada.
Brindes e urros do clube da
luluzinha. Qual seria a receita?
- Tô apaixonada por um
bofe lindo e fofo demais! Ele é gentil, bem apessoado,
adora música clássica, sabe se vestir bem,
tem bom gosto para restaurantes, gosta de viagens e sempre
repara em mim!
Curiosa, uma delas perguntou:
- Como assim?! Onde você
encontrou esse deus? Ele é perfeito!!!
Catarina, meio ressabiada,
fez bico, pousou os olhos longamente sobre a vela acesa
no centro da mesa, acendeu um cigarro e disse:
- Só tem um probleminha...
Ele é gay!
Leia
também
01/01/08
- Então
é Natal
12/12/07
- Três
amigas e um sapo
24/10/07 - Não
sou beata
____________________________________________________
Elisa Rodrigues
é de Osasco (SP). É da década de 70,
do tempo da "Disco", do início das músicas
"dancing", das cores fortes e vibrantes. É
claro que ela não viveu essa época! Digamos
que estava ensaiando os primeiros passos. Mas por causa
das mulheres dessa década e de algumas décadas
anteriores, ela e suas amigas, aos trinta, estão
vivendo coisas que nossas mães, avós, bisavós
e sei lá mais quem... nunca pensaram viver, sonhar,
decidir, fazer e... surtar! É teóloga, cientista
da religião (doutorada) e enamorada da antropologia.
Estuda e escreve sobre História Social do Cristianismo
(I século) e Tradições religiosas no
Brasil. Possui artigos publicados em periódicos especializados
em e um ou dois livros. Mas queria mesmo era ser cantora
de barzinho.
|