
07/04/08
Mulheres analisadas
Catarina acordou. Abriu os
olhos naquela manhã e seu primeiro pensamento foi:
bege... Tudo bege.
Sentiu que sua vida, assim como o teto de seu quarto, era
daquela cor monótona e fosca. Dia após dia,
as horas, os minutos e os segundos que desvaneciam ainda
tão joviais, indicavam que a vida começava
todas as manhãs pelo não. A vida era negativa.
Sem vontade, moveu-se para o lado: vazio. Tocou o colchão:
frio. Olhou para o relógio no criado-mudo, os ponteiros
moviam-se na mesma cadência de sempre. O tempo passava.
Melhor, se arrastava. A hora de acordar, preparar o café
amargo, colocá-lo na xícara de porcelana e
ir para a janela fumar o cigarro matinal, estranhamente,
não chegava. Catarina, então, sentou-se à
beira da cama, calçou os chinelos e pôs-se
em pé antes mesmo do despertador vermelho lhe chamar.
Andou pela sala. Foi até a cozinha. Voltou para sala.
Parou alguns segundos e seguiu até o banheiro, onde
molhou o rosto com água fria. Catarina tinha a face
ressequida pela maquiagem que aplicava todos os dias antes
de ir para o trabalho. Sua pele surrada reclamava atenção,
mas Catarina não atendeu ao pedido de hidratação.
Lá fora, via pela pequena janela, estava tudo cinza:
céu, nuvens, pessoas.
Definitivamente, Catarina precisava conversar, mas com quem?
Nenhum nome despontava em sua mente. Nenhum rosto aparecia
desenhado na lembrança. Nenhuma voz ressoava. Então,
veio a idéia: terapia. Preciso de terapia.
Buscou a agenda e encontrou um número de telefone
anotado entre uma conversa e outra na mesa de algum boteco.
Era a indicação de um terapeuta do amigo de
uma amiga, que há muito tempo tinha levado sua amiga
“surtada” até o consultório dele.
Catarina pensou: será que ele é gatinho?
Fez o esforço de caminhar até o telefone.
Ligou para o número da agenda. Escutou a voz enjoada
da atendente: Consultório do Dr. Félix,
bom dia! – ao que Catarina respondeu:
- Preciso marcar uma consulta. Qual o dia e o horário
mais próximo que você tem?
- Só um minuto que estarei verificando,
senhora!
Humf!!!! “Estarei verificando????”
Horrível! Começamos mal. Qual a razão
ignóbil que leva alguém a usar esse “gerundismo”
ridículo. Esse recurso estúpido que lança
a ação do sujeito lá para o tempo futuro
e o descompromete de executar qualquer coisa que seja hoje.
Que merda!!!!
- Senhora? Há um horário livre hoje. Está
interessada? – Ao que Catarina respondeu com urgência:
- Sim, sim! Claro. A que horas?
A atendente enjoada acertou o horário e se despediu.
Catarina buscou a melhor rota para chegar ao consultório,
se ajeitou despretensiosamente e seguiu para a garagem.
Tinha cerca de uma hora para chegar ao destino, mas precisava
se apressar, pois o trânsito de São Paulo estava
cada vez mais imprevisível.
No horário marcado estava lá. Sentou-se ainda
esbaforida no sofá. Cruzou as pernas e abriu uma
revista Caras. Estava ansiosa pelo encontro. “Encontro?
Não. Não”.
Passou as páginas sem, na verdade, enxergar qualquer
coisa. Música instrumental, cores claras, uma atendente
vesga e um vaso de espada de São Jorge ao lado da
mesinha com água, café e bolachas. Dr. Félix
não era bom decorador.
Enfim, seu nome foi chamado através da porta entreaberta.
Lentamente levantou-se e caminhou em direção
a voz, que por sinal era forte e segura. Sentiu um frio
na espinha. Encarou o homem. Era alto, moreno, grisalho,
lábios grossos. Vestia roupa casual e usava óculos.
Merda!!!! É gato. Vou me apaixonar.
Um mês se passou e junto com aquelas horas, minutos
e segundos, foi também a crise existencial de Catarina.
Certa feita, a loira dourada foi, por assim dizer, confrontada.
Dr. Félix mexia os lábios, segurava o queixo,
voltava o olhar para o quadro na parede, ficava reflexivo
e voltava a falar. As palavras nem eram tantas, mas Catarina
se perdia naqueles movimentos e, geralmente, não
respondia o que lhe era perguntado. Então, Félix,
seco, chamou-a de volta a terra:
- Catarina, eu vou encaminhá-la para outro terapeuta.
- Hã?! Como assim?
- Eu estava tentando explicar que de nossas sessões
deveria ficar uma coisa que é o Ser do analista em
relação ao analisando, que é a vontade
de emancipação do segundo em relação
ao primeiro e que corresponde ao desejo que o analista tem....
- Mas... Não! Não! Me deixa presa! Please...
Com olhar duro, disse o terapeuta:
- Eu estou entendendo que está havendo aqui uma identificação
do seu eu com uma imagem ideal aí, de algo, de alguém...
trata-se de uma miragem que se sustenta numa imagem de líder...
uma identificação imaginária que...
Catarina o interrompeu abruptamente:
- Não termina... Por favor, não agüento
mais terminar relacionamentos. – E choramingando disse:
- Até o meu gato me abandonou...
Não houve jeito. Catarina foi encaminhada para outro
terapeuta que logo de princípio propôs uma
“associação livre”... Depois de
uma semana, Catarina percebeu que as sessões tinham
feito algum efeito. Ela tinha mudado, talvez, se tornado
mais segura.
Mas com vergonha de admitir publicamente que sequer o terapeuta
tinha lhe agüentado, tomando café com a amiga
e conversando a esse respeito, preferiu justificar com ares
de entendida: - Ao término de um processo de
análise, o indivíduo chega num ponto de inconsistência
do Outro. Num lugar onde o Outro não responde.
– Levantando a sobrancelha para enfatizar a exclamação
e continuou: Nessa hora, o sujeito fica sem recurso,
ele pira, saca?! – E com muita convicção,
ela extraiu lá de dentro:
- A gente não pode esperar do Outro a salvação.
(Silêncio dramático). Esse Outro não
pode responder, porque não existe “A”
resposta. É nessa hora que a gente, enquanto sujeito
da nossa história, se sente na solidão originária....
Que a gente sente o desamparo, o vazio, a angústia...
E a amiga, quase dormindo:
- A-hã!? Você queria transar com o terapeuta,
né? - Meio sem jeito, Catarina respondeu:
- Faz mal tentar? (e entrementes, pensou: Quando chega
ao período balzaquiano, toda mulher que se preze
faz análise e tem um melhor amigo gay).
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sou beata
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Elisa Rodrigues
é de Osasco (SP). É da década de 70,
do tempo da "Disco", do início das músicas
"dancing", das cores fortes e vibrantes. É
claro que ela não viveu essa época! Digamos
que estava ensaiando os primeiros passos. Mas por causa
das mulheres dessa década e de algumas décadas
anteriores, ela e suas amigas, aos trinta, estão
vivendo coisas que nossas mães, avós, bisavós
e sei lá mais quem... nunca pensaram viver, sonhar,
decidir, fazer e... surtar! É teóloga, cientista
da religião (doutorada) e enamorada da antropologia.
Estuda e escreve sobre História Social do Cristianismo
(I século) e Tradições religiosas no
Brasil. Possui artigos publicados em periódicos especializados
em e um ou dois livros. Mas queria mesmo era ser cantora
de barzinho.
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