
05/09/07
A criança
e o brincar
Entre todos os grupos humanos,
a família desempenha um papel primordial na transmissão
da cultura, uma vez que transmitem tradições
espirituais, manutenção de ritos e costumes,
conservação das técnicas, do patrimônio
(dentre outros), presidindo os processos fundamentais do
desenvolvimento psíquico, constituindo-se como a
primeira formação educacional de qualquer
ser humano, e, portanto, como a primeira instituição
da qual fazemos parte.
Uma criança ao nascer, é acolhida por uma
família que o protege da angústia proveniente
da asfixia do nascimento, do frio, ligado à nudez
do tegumento e ao mal-estar labiríntico que corresponde
à satisfação do infante. Tal desamparo,
está diretamente ligado a uma insuficiente adaptação
à ruptura das condições do ambiente
e de nutrição que constituem o equilíbrio
da vida intra-uterina. Com isso, tudo o que constitui a
unidade doméstica do grupo familiar, torna-se para
o sujeito, objeto de uma afeição distinta
daquelas que o une a cada membro deste grupo.
A mãe, peça fundamental para o desenvolvimento
do bebê, o preserva de um abandono que para ele seria
fatal, quando o amamenta, abraça e o contempla, recebendo
e satisfazendo o mais primitivo de todos os desejos. No
entanto, a criança se desenvolve e, mediante ao seu
amadurecimento, ela passa por um processo fundamental para
a sua constituição enquanto sujeito: a castração,
vivenciada durante o Complexo de Édipo, momento em
que uma lei se insere como forma de repressão educativa,
colocando-se como obstáculo à realização
de suas pulsões, criando um recalcamento das tendências
sexuais, que permanecerão latentes até a puberdade
e uma sublimação da imagem parental que perpetuará
como um ideal representativo.
Porém, essa passagem que visa à constituição
da subjetividade do sujeito não é uma fase
tranqüila, é uma fase de desafios, que deixa(m)
a(s) sua(s) marca(s) mediante como foi introjetada ou não
a lei paterna. E, uma das formas que a criança usa
como artifício para comunicar o que ocorre em seu
mundo interno, o que pensa e sente, é através
do brincar.
O brincar é o espaço no qual se pode observar
a coordenação das experiências prévias
das crianças, através da ativação
da memória e aquilo que os objetos manipulados sugerem
ou provocam no momento presente. Através da repetição
daquilo que já conhecem, por meio da imitação
deferida, atualizam seus conhecimentos prévios para
compreendê-los e ampliá-los.
O brincar constitui-se dessa forma, em uma atividade da
criança, baseada no desenvolvimento da imaginação
e interpretação da realidade, representando
uma forma privilegiada de expressão infantil e implicando
na constituição do ser como sujeito e sua
inscrição na ordem simbólica e na cultura.
A criança, quando brinca, manifesta em seus desenhos,
sonhos, relatos e jogos, um discurso a decifrar. Brincando,
a criança aprende as primeiras noções
sobre os direitos alheios e a sociabilidade. O ego se estrutura
e fortifica, fazendo com que a criança aprenda a
competir.
Todos os brinquedos são educativos. Não o
brinquedo em si, mas o jogo em que em torno dele a criança
executa. A criança quando brinca, modifica a realidade
ou repete fatos dolorosos a fim de libertar das tensões
ou pressões demasiadamente intensas. O brincar é
um processo consciente e ativo, podendo manifestar-se de
duas formas, corrigindo a realidade ou facilitando a elaboração
(repete suas vivências, tentando elaborá-las).
O momento em que uma criança mergulhada na linguagem
é por ela tomada, instaurada na condição
humana, é representado na teoria psicanalítica,
por um momento de jogo. Freud (1976), estabelece a diferença
entre o brincar e o fantasiar da criança, afirmando
que no jogo, a criança, embora catequise seu mundo
de brinquedo, o distingue perfeitamente da realidade e gosta
de ligar seus objetos e situações imaginadas
às coisas visíveis e tangíveis na realidade.
Pode-se perceber a articulação no brincar
de três vertentes: imaginária, simbólica
e real. Para Freud, o jogo infantil, vislumbra o desejo
que não vai ser satisfeito e transforma a realidade
penosa. O jogo é resposta: resposta do real. Vinculado
à constituição do sujeito, o jogo torna-se
o protótipo de uma atividade simbólica, e
sua interpretação está na articulação
da ação, com os vocábulos que a acompanham.
Para Freud (1906), no período em que a criança
brinca, a imaginação dela entrega-se à
tarefa de “libertar-se” dos pais ou de algo
que causaram “decepção” e substituí-los
por outros, em geral por uma outra forma mais “requintada”
que não gere tanto desprazer. Nessa conexão,
lança mão de qualquer coincidência oportuna
de sua experiência real. A técnica utilizada
no desenvolvimento dessas fantasias, geralmente conscientes
neste período, depende da inventividade e do material
disponível à criança.
Para ilustrar, o caso Tombos de um sonhador, Quinet (2000)
usa durante a análise de Jean-Louis duas formas de
brincar na tentativa da criança resignificar o seu
sintoma.
Jean-Louis é um menino francês de oito anos,
segundo filho de uma família que passou uma temporada
morando no Rio de janeiro, sendo o pai sul-americano e mãe
francesa. Dos quatro filhos homens desse casal, ele e seu
irmão que são os filhos do meio são
hemofílicos, e o mais velho e o mais novo não.
O sintoma que levou Jean-Louis até a análise,
é que o mesmo andava totalmente distraído,
sem concentração alguma na escola. E, o mais
grave que a distração, era os acidentes recorrentes
com ele próprio, pondo em risco a sua vida.
O autor no processo de análise utilizou papel e lápis
para desenhos livres e, num dado momento, uma brincadeira
criativa de contar até três. No decorrer das
sessões e a adequada intervenção do
analista, Jean-Louis passou a bem-dizer de seu sintoma.
O sujeito do inconsciente, que é o sujeito da associação
livre, atribuiu um significado que lhe é próprio
a partir da interpretação a nível de
significante feita pelo analista. Assim, Jean-Louis passou
a poder perlaborar a sua relação com seus
atos sintomáticos (acting out).
Levando em consideração o que foi dito, o
brincar então pode ser um grande aliado no processo
de análise em crianças, pois é mediante
a atividade que engloba arte e fala que elas poderão
expressar os seus desejos e resignificar suas experiências
desprazerosas, isso com a ajuda do analista que se presentifica
intervindo nas sessões com uma escuta dinâmica
mediante a brincadeira feita pelo cliente infante.
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Eduardo
Lacerda é psicólogo clínico,
pós-graduando em psicanálise pela PUC Minas,
interessado no estudo dos sintomas contemporâneos,
um curioso que busca entender as implicações
do inconsciente na vida singular dos indivíduos pós-modernos.
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