
30/07/07
Repolho
e o cachimbo
Desde
pequena moro no mesmo bairro e sempre conheci pouco a vizinhança.
Apesar de saber quem é quem, fiz raras amizades por
aqui. Com a molecada da minha idade tive mais contato e,
na época de escola, conheci um garoto a que todos
chamavam de Repolho. Morava com os avós em uma casa
simpática e estudava, diferente de mim, em um colégio
particular no bairro vizinho. Levava uma vidinha normal,
entre amigos, namoradas e família.
Passaram-se
anos até que soube que o rapaz havia pirado. Mendigava
pelas ruas a fim de sustentar o vício. Quando me
abordou pedindo um trocado, notei que as pontas dos dedos
denunciavam sua preferência e o sentenciavam. Morar
ao lado de uma grande favela tem dessas coisas: a gente
aprende a pular os corpos estendidos no chão e passa
a achar normal o uso de drogas sempre por perto. A merda
só conquista preocupação quando atinge
alguém conhecido. Só assim a discussão
do tema atravessou o asfalto e veio à tona no bairro.
A
Pedreira Prado Lopes é uma das favelas mais antigas
de Belo Horizonte, famosa por ter inserido o crack ao cenário
do tráfico mineiro e fica bem à frente do
meu bairro. Desde muito tempo percebo os cachimbos sendo
acesos quando pego o atalho que passa pela avenida principal
da favela para chegar em casa à noite. São
luzinhas que revelam rostos jovens afundados na escuridão
do vício. Reportagens já tentaram denunciar
a crackolândia, mas nada foi capaz de deter a venda
e o consumo da droga.
Na
época da faculdade, fazia o percurso a pé
e tinha que atravessar o São Cristóvão
toda manhã. Mesmo estando separada da Pedreira pela
Avenida Antônio Carlos, era possível notar
a enorme quantidade de meninos e meninas estirados no mesmo
chão que ratos e lixo também ocupavam. O efeito
da droga era tão grande que, ao voltar para casa,
ao meio dia e com sol a pino, eles ainda estavam lá
sem ter idéia do correr das horas.
Preocupa-me
pensar no futuro da região, pois não há
Linha Verde, Vermelha ou Amarela que abra os olhos de governantes
e cidadãos para o que se passa aqui todas as noites.
Se Belo Horizonte conquista hoje a média de vinte
mortos por fim de semana, isso só ganha visibilidade
quando acomete jovens de regiões nobres da cidade
que se envolvem com a violência por diversão
e gosto pelo risco e não por se tratar da difícil
realidade vivida na favela por toda uma vida. E o exercício
da cidadania só começa a ser praticado quando
a mãe de um deles sente que o problema pode ultrapassar
as fronteiras que separam classes delimitadas por zona norte
e zona sul e passa a atingir lares de "gente honesta",
como se a favela não estivesse, também, repleta
deles.
O
tema igualdade social ainda está longe de frear o
tráfico praticado por aqui, pois as pessoas desconhecem
a força que possuem em mãos para combatê-lo.
E mais uma noite o movimento do fechar dos olhos é
feito em BH enquanto o sangue não escorre pelo lado
de cá e o tiroteio continua a só ganhar destaque
na televisão quando é parte integrante do
eixo Rio-São Paulo.
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Cristina Mereu
é formada em jornalismo pelo
Uni-BH, adora internet, cinema, fotografia, música
e literatura. E escreve mensalmente para a coluna Trejeitos.
E-mai: cristinamereu@gmail.com
Sobre a coluna Trejeitos
Cada qual do seu jeito, cada um com seu trejeito. O que
não muda é o amor à profissão
e a vontade de registrar em palavras o que não pode
ser esquecido: a capacidade de falar por aquele que cala,
a crítica, o bom jornalismo, a denúncia, os
vários ângulos, as diversas histórias,
o lirismo.
Nesta coluna, o leitor encontra
crônicas escritas sob a ótica de três
diferentes estilos. Os jornalistas Ariadne Lima, Cristina
Mereu e Guilherme Amorim escrevem sobre temas variados a
cada semana, partilhando com o público, cada um,
um jeito diferente de enxergar a vida.
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