
07/05/07
O último dia
Todos
puderam notar em meu semblante de derrota a raiva que senti
assistindo ao seu ciúme e preocupação
com ela. Certamente, esses representam os piores momentos
da minha existência. Você não me enxerga,
não me toca, não me beija e você jamais
sentiria ciúmes de mim. E eu vou me tornando tão
mulherzinha, coitadinha e feinha que até entendo
o seu comportamento.
De
quatro, seguindo todos os passos que ela dá. Sem
dar a mínima para mim. E aí eu me odeio tanto
por ter esticado o cabelo, já desalinhado, maquiado
os olhos, que brevemente irão se borrar, ter tirado
as cutículas e ter me pintado inteira dentro de um
vestido caro para estar à sua frente que penso mil
vezes se não seria o caso de chamar um táxi
e me esconder para sempre.
Mas
você ainda nem notou os seus amigos gatos me cantando.
Você nem percebeu que eles me viram, me tocaram, tentaram
me beijar e disseram que você não me merece.
Eu devo estar mesmo tão louca, vulnerável
e pobrezinha que até desconhecidos já sabem
o que dizer para me convencer que este foi o último
dia me subordinando a tão pouco.
E
eu posso estar descabelada, desfigurada e suada, mas já
que desci até aqui, vou dizer que você não
presta, que eu prefiro seus amigos gatos, que eu vou vomitar
mais um pouco enquanto você se rasteja por ela e quando
eu voltar, aliviada e cansada, vou desejar que tudo isso
tenha acabado. Vou topar uma injeção de auto-estima
com seus amigos gatos, vou me permitir te odiar, te magoar,
te amar e te perdoar mais uma vez.
Eu
vou querer te esquecer para quando você perceber que
ela dá para todo mundo, além de você,
eu estar tão ocupada em minha vida, e não
mais vivendo a sua, que não vou nem perceber os seus
chamados e pedidos de desculpas.
E,
enquanto você segue os passos de uma qualquer, eu
aceito me consolar no colo de seus amigos gatos, muito gatos.
Vou tomar mais uma, dançar a nossa música
e encerrar a noite com a certeza da companhia do travesseiro
encharcado e brindar, mais uma vez por você, todo
o canal lacrimal, a pressão cerebral e a ressaca
moral! Por você, a minha decadência, a minha
demência e incompetência, derrotada em mais
um último dia! Tim tim!
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Cristina Mereu
é formada em jornalismo pelo
Uni-BH, adora internet, cinema, fotografia, música
e literatura. E escreve mensalmente para a coluna Trejeitos.
E-mai: cristinamereu@gmail.com
Sobre a coluna Trejeitos
Cada qual do seu jeito, cada um com seu trejeito. O que
não muda é o amor à profissão
e a vontade de registrar em palavras o que não pode
ser esquecido: a capacidade de falar por aquele que cala,
a crítica, o bom jornalismo, a denúncia, os
vários ângulos, as diversas histórias,
o lirismo.
Nesta coluna, o leitor encontra
crônicas escritas sob a ótica de três
diferentes estilos. Os jornalistas Ariadne Lima, Cristina
Mereu e Guilherme Amorim escrevem sobre temas variados a
cada semana, partilhando com o público, cada um,
um jeito diferente de enxergar a vida.
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