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Terça-feira -10/04//07
Da difícil arte de tolerar

“Porque Narciso acha feio, acha feio,
o que não é espelho”
Caetano Veloso

A modernidadenos presenteou com um sentimento de que fazemos parte da grande família humana. Para além da nossa família, de nossa rua, de nosso bairro, de nossas preferências sociais, estamos submersos nisso que se chama comunidade universal. A este conceito, deu-se o nome de Universalismo.

Antes da modernidade, o que se sabe é que as relações entre grupos culturais diferentes eram com base na guerra e na força e que as relações empáticas eram restritas ao grupo de pertencimento de um indivíduo. Uma conseqüência – talvez grave – é que o não-universalismo promoveu o que Freud denominou de Narcisismo das pequenas diferenças, ou seja, os pequenos grupos tendem a fechar-se em torno de si mesmos em função da percepção que tem negativa de outros grupos, com base na diferença e, daí, acharem-se melhores que tais grupos. É como se esses pequenos grupos fossem eles mesmos o todo da humanidade. Um exemplo disso é o já tão citado e famigerado movimento nacionalista alemão.

Se o Universalismo é importante porque nos faz compreender que somos habitantes da mesma casa, por outro lado, o que nos permite sustentar a nossa posição na espécie é exatamente o fato de, “no meio da multidão”, nos deslizarmos dos ideais sociais que a humanidade constrói e tenta universalizar a todos. Desse modo, o Universalismo é bom, mas não permite que a diferença apareça.

A diferença, nesse caso, refere-se à capacidade de lidar com a alteridade, uma vez que o outro se apresenta como aquele que serve de referência para a construção do que se chama identidade, com base naquilo que religiosamente se costumou denominar de amor ao próximo, mas, também, com aquilo que me faz radicalmente singular.

Um exemplo interessante a ser tomado é o caso de X-Men, aqueles jovens Portadores de Necessidades Especiais que se sentem rejeitados, desamparados da existência e da sociedade exatamente por serem diferentes. Para quem conhece, os X-Men são jovens dotados de poderes que os tornam com um plus em relação aos demais humanos e, no filme que deu origem à série, um senador norte-americano deseja criar uma lei que obrigue a todos os X-Men a se identificarem. Uma lei promulgada pelo Estado se consolida como uma forma de exclusão, a partir de um aparato jurídico que Gilles Deleuze denominou de um modo de subjetivação baseado na controle, um controle que é quase invisível, portanto, mais difícil de ser combatido.

Mas, por quê é tão difícil a tolerância? Por quê sempre se é necessário promover formas de segregação, sejam veladas ou explícitas? Por quê se torna necessário que os gays saiam do armário, que as crianças com síndrome de Down sejam sempre “lindinhas e adoráveis”, que os mendigos morem em abrigos? ...
... A filantropia também pode ser uma forma de segregação quando ela não escuta o aquele que é atendido, os modernos movimentos de liberação sexual também pode ser excludentes quando eles impõem aos “reprimidos” uma liberação forçada e um único modo de ser “liberado”.

Tolerar se torna difícil quando a relação que estabelecemos com o outro se torna meramente especular, ou seja, quando se deseja que o outro reflita aquilo que se é, ou, mais ainda, quando se nota no outro algo que me diz respeito e isso é insuportável.

O Universalismo apresentou grandes avanços na relação entre os povos, permitiu a elaboração de um sentimento de humanidade, sugeriu saídas mais humanitárias. Por outro lado, como efeito colateral promoveu o surgimento de uma catalogação de atitudes, excesso de classificação, promoção de códigos e regras de conduta com os quais o sujeito precisa se identificar. X-Men torna-se paradigmático no sentido de que uma sociedade que não desenvolveu a arte de tolerar tende à destruição, pois, narcisicamente, fecha-se em torno de si mesma e não escuta o Eco de outras vozes que tentam apresentar-lhe uma palavra que permite nomear e criar o novo. Para a Psicanálise, é sempre a partir de uma verificação no singular, no um-a-um, naquilo que podemos denominar de caso único é que a diferença irá se circunscrever e não permitir que o sujeito se afogue na imagem refletida no espelho d’água. O sujeito contemporâneo, teimosamente, como sustenta a Psicanalista Mineira Elisa Alvarenga, “... resiste às iniciativas de ser enquadrado e classificado.

A redução das classes ao que Lacan chamou de ‘semblante’, ao que faz às vezes de uma outra coisa, não deixa de trazer conseqüências importantes para a psicanálise, porque dá lugar a um sujeito que escapa às regras e classes pré-estabelecidas. Enquanto o animal realiza sua espécie como exemplar, o ser falante é sujeito porque, por mais que pertença a uma classe, jamais será um exemplar adequado dela. O sujeito é, segundo Miller, essa disjunção que faz com que o rouxinol de Keats seja o mesmo que o rouxinol de Ovídio e de Shakespeare, embora Keats não seja Ovídio, nem Shakespeare. Quando apontamos para o sujeito, introduzimos a contingência e a surpresa, pois o caso único será sempre, em maior ou menor grau, uma exceção à regra de uma classe”.

Sendo assim, o que posso dizer é que cada um é convidado a se subtrair daquilo que o classifica, daquilo que o fixa na dimensão universal e invente um modo novo de existir, um modo que lhe é próprio, ainda que “bizarro”, elaborado pela surpresa e pela contingência.

Para melhor entender:
1- CERTEAU, M. a invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
2- FREUD, S. O narcisismo das pequenas diferenças. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
3- LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: ______. Outros escritos. Ri o de Janeiro: Zahar, 2003.

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Cássio Miranda é psicanalista, doutorando em Letras pela UFMG e escreve todas as terças. E-mail: cassioedu@oi.com.br

 

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