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Terça-feira -13/03/07
APERITIVOS PSICANALÍTICOS SOBRE O FEMININO: À PROPÓSITO DO DIA INTERNACIONAL DA MULHER (1)
“Não esqueçam que só descrevemos a mulher na medida em que seu ser é determinado
por sua função sexual.
Essa influência sem dúvida se estende até bem longe,
mas não perdemos de vista que,
à parte isso,
cada mulher poder ser também um ser humano.
Se quiserem saber mais sobre a feminilidade,
interroguem suas próprias
experiências de vida,
ou dirijam-se aos poetas,
ou esperem até que
a ciência possa lhes dar informações
mais aprofundadas e coerentes”.
Sigmund Freud, 1931
A sexualidade é, primeiramente, um dado da natureza. Um dado fatalmente marcado pela determinação biológica dos sexos. Desde o início da fecundação do óvulo pelo espermatozóide o sexo – seja ele cromossômico ou gonadal – aparece como uma marca na estrutura corporal-biológica do vivente. Tal dimensão instintiva não pode ser ignorada. É por ela e através de sua ação que o ser humano se reproduz e perpetua a espécie.
Por outro lado, o Homem é um ser social sendo, ao mesmo tempo, produtor e produto da cultura. Dessa forma, a sexualidade é vivenciada de modo concreto na história e não é algo desconectando do fator cultural. A cultura, produto do trabalho humano, incide sobre o instinto sexual do Homem demarcando-lhe espaços, formas, variações e um padrão de comportamento causando uma tensão básica entre estas duas instâncias: cultura e sexualidade.
A ação educativa da cultura sobre os instintos se dá de modo formal e informal e compreende “todas as ações, deliberadas ou não, que se exercem sobre um indivíduo, desde o seu nascimento, com repercussão direta ou indireta sobre suas atitudes, comportamentos, opiniões, valores ligados à sexualidade”, conforme sustenta Marlene Werebe. Assim, a ação informal da educação existe em toda as civilizações, de maneira explícita ou implícita, consciente ou não. Neste aspecto, a família é vista como o primeiro espaço de educação sexual e o local de formação privilegiada do Sujeito. De certa maneira, toda família educa sexualmente os seus membros através da transmissão de valores e idéias sobre amor e sexualidade.
A cultura trata de educar o instinto atribuindo um significado social ao corpo biológico, transformando-o em um corpo politizado, em um processo relacional com o outro. Neste processo, esse corpo assimila políticas geradas por uma ação do poder. O poder é, desde Foucault, como os elétrons de um átomo estando em constante movimento constituindo-se como uma prática cotidiana que acontece nas relações sociais. Tal poder é disciplinar e capaz de formar subjetividades, que vão definindo espaços, lugares, posições, etc. Assim, Foucault assinala que os micropoderes não estão localizados em nenhum lugar especifico, centralizado e pontual, encontrando-se em uma rede de dispositivos dos mais diversos aos quais ninguém escapa. Daí Foucault afirmar que o poder não existe, mas sim relações de poder. Apresentando uma obra de Michel Foucault, Roberto Machado afirma:
“As próprias lutas contra seu exercício não podem ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede de poder, (...) a que ninguém pode escapar: ele está sempre presente e exerce como uma multiplicidade de relações de força. E como onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social”.
Por esse prisma, percebe-se que Foucault promove um corte nas discussões em torno do poder em sua época. Até então, a discussão filosófica sobre o poder acontecia na polaridade entre poder e não-poder. O entendimento corrente situava em torno dos detentores do poder e aqueles que sofriam as ações, por vezes abusivas, do mesmo. Desse modo, o poder era visto como uma instituição ou como uma potência que um grupo minoritário possuía. Ao formular o poder como uma relação dinâmica de estratégias sempre presentes, contrariando a crença corrente, em Foucault o poder se constitui como uma unidade invisível, sendo os seus lugares a multiplicidade de relações que se estabelecem.
Em seu construto teórico, Foucault alerta-nos para a dimensão imaginária do poder, sustentando que há várias representações do mesmo. Para ele, a dominação é muito mais sofisticada e complexa do que se apresenta. Assim, ele questiona a tal apregoada noção de poder como repressão, tão cara ao marxismo e chama atenção para sua incidência sobre o corpo do indivíduo, enquanto biopoder. Com tal noção, o questionamento incide ainda sobre o conceito corrente de ideologia, uma vez que não apenas o mental do indivíduo encontra-se afetado pelo poder, mas sim o seu corpo, seus gestos, suas posturas, seu comportamento, enfim, toda sua corporalidade.
No que tange à sexualidade o poder molda o corpo, ora com o sim, ora com o não. No seu aspecto positivo, ele forma sujeitos, no aspecto negativo, ele coage os sujeitos. Ditando um modelo de corpo e uma prática da sexualidade, o poder demarca o seu lugar no espaço social. Na perspectiva foucaultiana, o poder atinge a todos, produzindo indivíduos e construindo desejos.
Em A história da sexualidade - vontade de saber Foucault (1984) apresenta os dispositivos da sexualidade sustentando que um dispositivo refere-se, dentre outros aspectos, a um conjunto de elementos constituído por instituições, linguagens, leis, etc., tendo como finalidade primordial alguma forma de dominação. No que respeita às mulheres, o prazer feminino foi ignorado ou condenado pela Igreja católica e eram vistas como naturalmente mais lascivas que os homens. O historiador francês Phillipe Ariès nos informa que La petite Bible dês jeunes époux, publicada em 1885, “... recomenda que se busque o orgasmo simultâneo. Antigamente, a mulher que gozava era tida como ninfomaníaca, ao passo que o homem casado que freqüentava bordéis era considerado ‘normal’”. Foucault nos relata que no caso de uma relação conjugal, o marido se apoderava da mulher e possuía sobre ela os direitos legítimos. Assim, no caso de adultério, o peso do casamento recaia apenas sobre a mulher, sendo que tal situação não devia intervir no caso do homem. Para Foucault, “essa definição de adultério unicamente como dano aos direitos do marido era bem comum a ponto de ser encontrada até numa moral muito exigente como a de Epicteto” (p.172).
Desse modo, o que se percebe é a posição do feminino enquanto crime político, construído socialmente a partir de práticas discursivas que se constituem como práticas de poder, sendo, portanto, uma prática política, constituindo-se, por sua vez, como uma prática de sujeito.
Poder e saber caminham em uma relação estreita e direta. Para Foucault (1987), o poder produz saber, não havendo relação de poder sem uma ressonância correlata no campo do saber. Do mesmo modo, não existe um saber que não se constitua em relações de poder.
Desse modo, constrói-se saberes em torno da noção do feminino tendo em vista uma prática de dominação histórica e social. À mulher, cabe o espaço do privado. Ao homem, o espaço do público, sendo que a classe dos homens demarca três formas de poder: uma ascendência sobre as mulheres, a preeminência dos adultos sobre os jovens e a separação entre o mundo dos homens e o mundo das mulheres.
A anatomia e a fisiologia dos órgãos genitais certamente definem a tipologia sexual. Afinal, ser macho ou ser fêmea depende da presença de um pênis ou de uma vagina, por exemplo. Entretanto, a identidade sexual, denominada de identidade de gênero, é construída em função dos fatores já ditos e ainda ligada a fatores econômicos, sociais e culturais. A diferenciação sexual é, pois modelada como resultado da interação social e a determinação biológica, uma vez que Ser homem ou ser mulher são dois modos humanos de existir numa sociedade que não é regulada apenas pela dimensão biológica, mas que impõe suas próprias regras ao orgânico, que a precede e se protege dos sentimentos que a seguem.
Mas, o que isso tem a ver com dia internacional da mulher? E a psicanálise, com seu caráter libertário libertador? São questões a serem discutidas na próxima semana.
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(1) O propósito deste texto é inaugurar uma série relacionada ao mês da mulher. Pretendo, com isso, levantar apontamentos a respeito da mulher e da feminilidade e, ao mesmo tempo, prestar uma homenagem às mulheres.
Leia também
27/02/07
Amor em tempos de guerra
06/03/07
Amores orbitais e outros amores ___________________________________
Cássio
Miranda é psicanalista, doutorando em Letras
pela UFMG e escreve todas as terças. E-mail:
cassioedu@oi.com.br
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