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Quem foi o filho da puta que parou a porra do carro que não era de deficiente porcaria nenhuma na vaga que, com muito custo (e depois de uma multa por estacionar na minha própria vaga, sem credencial, porque obviamente existe uma burocracia enorme para garantir a vaga), eu consegui?

31/10/08
3ª MOSTRA CINEMA E DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA DO SUL

Nesse ano, comemoramos seis décadas da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E é com enorme prazer que trago em pauta um tema tão importante e de extrema relevância para a sociedade contemporânea. Hoje tive a oportunidade de comparecer à abertura da 3ª Mostra Cinema e Direitos Humanos da América do Sul. Realizado com apoio da Petrobrás em 12 cidades brasileiras, o evento acontece na capital mineira do dia 27/10 a 02/11, no Palácio das Artes – Av. Afonso Pena, 1537, Centro.

Ao procurar uma vaga de deficiente físico na porta do teatro, encontrei logo duas. Nelas, dois carros parados respectivamente com dois adesivos: a Nossa Senhora com o “terçinho” pendurado no Celta e a Igreja Batista da Lagoinha com a pombinha branca no meio do Palio Weekend; ambos sem credencial ou qualquer indicação de carro adaptado para portadores de necessidades especiais. Sem delongas, liguei para a BHTRANS, que fez questão de me passar o número do protocolo do chamado e reiterar que, em no máximo, 60 minutos, um guarda lá estaria para me salvar; e, pelo fato de eu estar no centro da cidade, o período seria menor, levando-se também em conta a urgência que eu tinha em cobrir o evento, que tinha hora prevista pra a começar e eu já estava atrasada dois minutos.

Parei o carro no meio da rua, ao lado das vagas, liguei o pisca alerta e resolvi esperar. No início da espera pensei em já ir dando uma adiantada na matéria e coincidentemente minha pauta era Direitos Humanos. Que azar o nosso, caro leitor, vontade de sair metendo o pau no que chamam direitos e pior, em quem se diz “humano”. Quem foi o filho da puta que parou a porra do carro que não era de deficiente porcaria nenhuma na vaga que com muito custo (e depois de uma multa por estacionar na minha própria vaga, sem credencial, porque obviamente existe uma burocracia enorme pra garantir a vaga) eu consegui?

Resolvi respirar fundo, ouvir a Billie Holliday, cantar, fechar o vidro, ligar o ar condicionado pra amenizar o calor de quase 40 graus dessa cidade e escrever. “Mas que seres são estes, os humanos?” e ouvi uma dondoca bater no vidro do meu carro falando que ia sair (era a do pálio). Ela andava com as duas pernas, enxergava com os dois olhos, provavelmente tinha acabado de sair de um espetáculo no qual deve ter batido muitas palmas com as duas mãos e só não pude mesmo constatar se era muda, porque nem me dei o trabalho de abrir o vidro. E se fosse também, a adaptação não seria no volante...

Relaxei, respirei mais uma vez, fiz uma baliza maravilhosa em frente ao pipoqueiro e atrás do Celtinha da Nossa Senhora e pensei que a mulher da Igreja Batista da Lagoinha tinha sido bem sortuda de a BHTRANS não rebocar o carro dela, mas fiquei tranqüila. Provavelmente, quando eu voltasse, o Celtinha não estaria mais lá, afinal de contas, os deveres devem sempre fazer valer os direitos.

Desci do carro, sem sinal de nenhum guarda (nem municipal, daqueles que agora também podem multar) e fui, finalmente, cobrir o evento. Quase 200 trabalhos de 11 países da América do Sul enviados para seleção. Diretores como Buñuel, Joaquim Pedro de Andrade e Fernando Meirelles, discussões acerca da importância da repercussão da mostra no processo de democratização da sociedade, formação dos cidadãos e respeito aos Direitos Humanos. Refleti sobre toda aquela situação, sobre a educação da sociedade, sobre a pobreza, a miséria e a fome nos países subdesenvolvidos, sobre o preconceito, o caráter e sobre nossos deveres cívicos. Pensei sobre as pessoas e sobre suas diferenças.

Assisti ao curta-metragem “Tibira é Gay”, de Emílio Gallo, produzido no ano passado e muito bem elaborado no que se refere aos aspectos relativos à defesa dos Direitos Humanos. Aliás, toda a mostra tem esse cunho da denúncia através da linguagem poética, literária e artística. Na seqüência, o filme “O Aborto dos Outros”, de Carla Gallo, que trata do abortamento em suas formas variadas e que, segundo a diretora, “não é um filme feminista”, apesar do médio número de adeptas à causa que se encontrava no lugar e gritavam bravamente: “nós que parimos, nós que decidimos”.

Exageros à parte, o filme consegue reproduzir a angústia, a dor, a lágrima que escorre no canto dos olhos dessas mulheres que gentilmente ousam assumir seus “crimes” frente à sociedade. Essa sociedade de adesivos de Nossa Senhora e de protestantes fundamentalistas que só conseguem olhar para seus próprios umbigos. Que participam de movimentos na defesa de direitos humanos, mas na prática não têm a menor idéia do que isso significa. Desconhecem o respeito ou resolveram apagar a palavra de seus dicionários ‘cults’.

No mais, o aborto dos outros é tão ou mais dolorido que os nossos. No mais, ouvi discursos sobre a importância da preservação dos direitos humanos. No mais, que merda de política pública é essa que mesmo no meu silêncio após aborto, me fez ligar de novo na BHTRANS, duas horas e 40 minutos depois da primeira chamada, pra avisar que o Celtinha continuava no mesmo lugar, sem nenhuma multa, guincho ou reboque?

Que esses filmes sejam, no mínimo, o início do que efetivamente deva ser um estímulo às práticas democráticas sociais. Porque o atendente que deu o número do protocolo, nada pôde fazer com meu desabafo a não ser dizer que entraria novamente em contato com a central para providenciar um guardinha o mais rápido possível.

Liguei o carro, coloquei a Billie Holliday e saí confusa a respeito da real função da Declaração dos Direitos Humanos.

A entrada é franca. E não é todo dia que se vê mulheres no banheiro depois de uma sessãozinha de cinema discutindo a legalidade do aborto.

Sobre a mostra, confira a programação no site:www.cinedireitoshumanos.org.br

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2007


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Brisa Marques é jornalista e atriz. Acredita na arte, em qualquer uma de suas formas, como a essência fundamental do ser humano. Escreve quinzenalmente às sextas-feiras.
Fale com ela: brisamarques@gmail.com

   
 

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